domingo, 18 de outubro de 2009

Just like Tita.

"Como vê, todos nós temos em nosso interior os elementos necessários para produzir fósforo. E além disso deixe-me dizer-lhe algo que nunca confiei a ninguém. Minha avó tinha uma teoria muito interessante: dizia que ainda que nasçamos com uma caixa de fósforos em nosso interior, não podemos acendê-los sozinhos porque necessitamos, como no experimento, de oxigênio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigênio tem provir, por exemplo, do alento da pessoa amada. A vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar um detonador e assim acender um dos fósforos. Por um momento nos sentimos deslumbrados por uma intensa emoção. Se produzirá em nosso interior um agradável calor que irá desaparacendo pouco a pouco conforme passe o tempo, até que venha uma nova explosão a reavivá-lo. Cada pessoa tem de descobrir quais são seus detonadores para poder viver, pois a combustão que se produz ao acender-se um deles é o que nutre de energia a alma. Em outras palavras, esta combustão é seu alimento. Se uma pessoa não descobre a tempo quais são seus próprios detonadores, a caixa de fósforos se umedece e já não podemos acender um só fósforo. Se isso chegar a acontecer, a alma foge de nosso corpo, caminha errante pelas trevas mais profundas tentando em vão encontrar alimento por si mesma, ignorando que só o corpo que deixou inerme, cheio de frio, é o único que podia lhe dar isso.
Se alguém sabia disso era ela. Infelizmente tinha de reconhecer que seus fósforos estavam cheios de mofo e umidade. Ninguém podia voltar a acender um só."

Laura Esquivel. Como água para chocolate. São Paulo: Martins Fontes, 1993. pág. 94-95

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Nada diferente.

Pelo menos não pra mim, por mais que eu tente. Às vezes, é como se fosse ontem ainda. E hoje, em plena W3 no fim de tarde, tocou essa música e meu coração apertou no sinal. E o nó está na garganta até agora. Porque mesmo que está tudo diferente, hein? Quem foi mesmo que quis assim? E ainda não consigo não acreditar que Todas as trilhas caminham pra gente se achar, viu?

Tudo Diferente
Maria Gadú
Composição: André Carvalho

Todos caminhos trilham pra a gente se ver
Todas as trilhas caminham pra gente se achar, viu
Eu ligo no sentido de meia verdade
Metade inteira chora de felicidade
A qualquer distância o outro te alcança
Erudito som de batidão
Dia e noite céu de pé no chão
O detalhe que o coração atenta
Todos caminhos trilham pra a gente se ver
Todas as trilhas caminham pra gente se achar, né
Eu ligo no sentido de meia verdade
Metade inteira chora de felicidade
A qualquer distância o outro te alcança
Erudito som de batidão
Dia e noite céu de pé no chão
O detalhe que o coração atenta


A qualquer distância o outro te alcança
Erudito som de batidão
Dia e noite céu de pé no chão
O detalhe que o coração atenta
Você passa, eu paro
Você faz, eu falo
Mas a gente no quarto sente o gosto bom que o oposto tem
Não sei, mas sinto, uma força que embala tudo
Falo por ouvir o mundo, tudo diferente de um jeito bate
Todos caminhos trilham pra a gente se ver
Todas as trilhas caminham pra gente se achar, viu
Eu ligo no sentido de meia verdade
Metade inteira chora de felicidade
A qualquer distância o outro te alcança
Erudito som de batidão
Dia e noite céu de pé no chão
O detalhe que o coração atenta

domingo, 4 de outubro de 2009

Talento para viajar

"Essa é a verdade da viagem. Eu não sabia.
A vida nos ensina algumas coisas. Que a vida é o caminho e não o ponto fixo no espaço. Que nós somos feito a passagem dos dias e dos meses e dos anos, como escreveu o poeta japonês Matsuo Bashô num diário de viagem, e aquilo que possuímos de fato, nosso único bem, é a capacidade de locomoção. É o talento para viajar". (pág. 125)

"A viagem sempre é pela viagem em si. É para ter a estrada outra vez debaixo dos pés. Há sempre um E SE em algum lugar". (pág. 82)

Adriana Lisboa. Rakushisha. Ed. Rocco, 2007.

Respostas

"O senhor é tão moço, tão aquém de todo começar, que lhe rogo, como melhor posso, ter paciência com tudo o que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque por enquanto as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez, depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver as respostas."

Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: Globo, 2001. p.142

O direito de calar

"O homem constrói casas porque está vivo, mas escreve livros porque se sabe mortal. Ele vive em grupo porque é gregário, mas lê porque se sabe só. Essa leitura é para ele uma companhia que não ocupa o lugar de qualquer outra, mas nenhuma outra companhia saberia substituir. Ela não lhe oferece qualquer explicação definitiva sobre seu destino, mas tece uma trama cerrada de conivências entre a vida e ele. Ínfimas e secretas conivências que falam da paradoxal felicidade de viver, enquanto elas mesmas deixam claro o trágico absurdo da vida. De tal forma que nossas razões para ler são tão estranhas quanto nossas razões para viver. E a ninguém é dado o poder para pedir contas dessa intimidade."

Daniel Pennac. Como um Romance. L&PM, 2008. p.150

Das coisas que não voltam mais.

"Os livros contraem-se assim irremediavelmente, tragicamente. Não importa por onde comece a contaminação; há um cheiro, um restolhar de papel, e depois a gulodice alastra. Começa-se a ler muito antes de se saber localizar literaturas, nomes, gêneros, e há nesse estrebuchar inicial qualquer coisa de sublime que definitivamente se perde quando crescemos e aprendemos a selecionar o bom e o mau.
Lembro-me de vaguear inebriada pelas prateleiras das livrarias, folheando as prateleiras de baixo à procura do livro que eu queria e não sabia qual era, revoltada com a ideia de que talvez o tal livro estivesse nas prateleiras de cima. Lembro-me dos dias em que um título, uma frase, me faziam trazer para casa ratoeiras onde os dedos se estalavam e os olhos esmoreciam. Lembro-me de contar os dias que faltavam para a próxima mesada, jurando a mim mesma que desta vez não me precipitaria. Lembro-me, sobretudo, daquela rapariga de dezoito anos que nunca mais voltei a ver".

Inês Pedrosa. A instrução dos amantes. Ed. Planeta, 1992. p.102-103.