segunda-feira, 24 de março de 2014

Entrevista com Valter Hugo Mãe

No Programa Roda Viva da TV Cultura, exibido em 06/01/2014.




domingo, 23 de março de 2014

O amor acaba.

Eu vejo os seus erros e fico em silêncio, sem saber se posso ou devo lhe dizer algo. Vejo que tem feito escolhas erradas e eu gostaria de dizer o que penso, para quem sabe te dizer alguma coisa que faça você pensar e refletir, quem sabe até voltar atrás e consertar o que está ficando errado pelo caminho, enquanto é tempo. 

Porque todos nós erramos, uma vez ou outra na vida. Ás vezes, muitas vezes, nem sempre porque queremos. Muitas vezes ficamos tão cegos olhando para nós mesmos que não nos damos conta dos passos que damos e que vão machucando justo as pessoas que mais amamos. Não somos perfeitos, não temos sempre razão, o mundo não gira ao nosso redor. Mas o bonito da vida é a humildade de nos reconhecermos imperfeitos, em eterno aprendizado. Nunca deixamos de aprender, não existe esse momento em que dizemos "já aprendi tudo, já fiz tudo, não resta mais nada a fazer na minha vida, não preciso de mais ninguém". Isso é desperdiçar e reduzir, e muito, a oportunidade maravilhosa que Deus nos deu de viver essa vida, até o último segundo, e tirar dela o máximo de aprendizado que pudermos aprender. Mas eu não vou falar de Deus. Porque na minha visão das coisas, deus está em todos os lugares e em todas as pessoas que encontramos em nosso caminho, gostemos delas ou não. Deus está na forma como tratamos os outros, como fazemos escolhas, em nossas atitudes diárias, no sorriso que colhemos. Em como fazemos as pessoas se sentirem quando as deixamos. A decisão é sempre nossa se vamos deixar alívio ou saudade. Que seja saudade, por favor.

Queria lhe falar da sorte que você tem de ter encontrado um amor verdadeiro. E lhe dizer que não estrague tudo por estar triste ou descontente com a vida. Porque o amor, por maior que seja, nem sempre resiste a todo tipo de mágoas e de provas (nunca entendi como se pode querer testar o quanto o outro nos ama provocando tristeza e decepção - amor verdadeiro não se testa, se reconhece, e isso deveria bastar.); amor não resiste quando falta carinho, apoio, palavras bonitas que alegrem o amor, compreensão, alguém que caminhe lado a lado, e não que queira caminhar à frente, porque isso é caminhar sozinho. E tenho medo que este amor acabe, sofro por isso. Porque tenho a plena certeza de que não há ninguém nesse mundo que não tenha se arrependido e sofrido por ter sido tolo o bastante para jogar fora um grande amor, desses tão difíceis de achar. Uma vida inteira de amor. Posso garantir que a dor desse arrependimento é bem maior do que qualquer tristeza, qualquer insatisfação momentânea. E não pode ser consertada.

Este texto é tudo o que eu gostaria de lhe dizer. Que cada dia é uma oportunidade única de recomeçar, de fazer coisas melhores, de tentarmos sermos melhores. Que o amor acaba sim, se você deixar. E que eu espero que você não o deixe acabar.

quinta-feira, 20 de março de 2014

O lugar sem limites


“As coisas que acabam dão paz e as coisas que não mudam começam a chegar ao fim, estão sempre chegando ao fim. O terrível é a esperança”. (pág.154)

José Donoso [1924-1996] é um dos grandes nomes da literatura chilena e um dos romancistas mais relevantes do chamado “boom” literário latino-americano dos anos 1960 e 1970. Em O lugar sem limites, Donoso nos apresenta uma protagonista marcante, a travesti Manuela. É através da história trágica de Manuela, sempre marcada por sua condição, que Donoso faz uma crítica ao machismo e a essa sociedade tão devota do patriarcado.

El Olivo é um vilarejo perdido no interior do Chile, que tem um pouco das cidades imaginárias latino-americanas. Um lugar que viveu na expectativa de crescer e se desenvolver, mas que com o tempo só encontrou a decadência. Um vilarejo em ruínas, cujo patriarca é Don Alejo, um homem que manipula todos ao seu redor para atingir seus objetivos, e que é o dono de quase todas as terras e casas da região. Para os habitantes de El Olivo “Don Alejo é único. É como Deus” [pág.86].

Quando Manuela chegou ao vilarejo para fazer uma apresentação no prostíbulo comandado pela Japonesa Grande, não imaginou que ali criaria raízes. Por conta de uma aposta com Don Alejo, a Japonesa Grande tem relações sexuais com Manuela e com isso passa a ser proprietária da casa, que antes era alugada de Don Alejo. Mas dessa relação nasce uma filha, a japonesita, que depois da morte da mãe, passa a dirigir o prostíbulo junto com Manuela, que por conta da aposta passou também a ser sócia do empreendimento.

A relação entre Manuela e a Japonesita é algo que chama a atenção pelos questionamentos que provoca nas duas personagens em sua identificação com o gênero. A Japonesita chama Manuela de papai, enquanto Manuela preferia ser chamada de mamãe.  A filha espera que o pai lhe proteja quando homens como Pancho Veja chegam e acabam com a ordem que existe na casa, muitas vezes usando de violência. Mas Manuela, sentindo-se velha e frágil em sua condição de mulher, pois é assim que se vê,  sabe que não tem como se defender ou defender a filha.

Quando a Japonesita começava a falar desse jeito, Manuela tinha vontade de uivar, porque era como se sua filha o estivesse afogando com palavras, cercando-o lentamente com sua voz uniforme, com aquela cantilena. Maldito povoado! Maldita menininha! Como pudera imaginar que só porque a Japonesa Grande o tornara proprietário e sócio da casa na famosa aposta que graças a ele ela ganhara de Don Alejo, as coisas iam mudar e sua vida ia melhorar.” [pág.70]

- Aonde você vai, papai?
- Está falando com quem?
- Não se faça de bobo.
- Quem é você para me controlar?
- Sua filha.
Manuela viu que a Japonesita falou com maldade, para estragar tudo e para refrescar a memória dos outros. Mas olhou para Pancho e, juntos, soltaram gargalhadas que quase apagaram as lamparinas.
-Claro, sou sua mãe.
- Não, meu pai.”
 [pág.146]

A vida de Manuela, tão marcada pela discriminação, por abusos e insultos, é um elemento importante criado por Donoso para criticar o machismo da sociedade, que não sabe lidar com a diferença e às vezes teme sentir desejo por ela. Nesse trecho, Pancho Vega, o valentão do vilarejo, chega ao prostíbulo e exige que Manuela dance para ele. Sua reação, inicialmente de desejo, é reprimido e expresso em seguida pela violência.

A dança de Manuela o golpeia e ele quisera agarrá-la assim, assim, até quebrá-la, aquele corpo que começa a exalar seu odor agitando-se em seus braços e eu com Manuela que se agita, apertando para que não se mexa tanto, para que fique sossegada, apertando-a, até que olhe para mim com aqueles olhos de redoma aterrorizados e enfiando minhas mãos em suas vísceras viscosas e quentes para brincar com elas, deixá-la ali estendida, inofensiva, morta: uma coisa”. [pág.144]

Um dia desses vai acontecer alguma coisa com ele, sempre digo isso para mim mesma, mas ele sempre volta. Uns três ou quatro dias depois. Às vezes fica uma semana inteira andando por aí pelos puteiros de outros povoados onde o conhecem, de rainha, diz ele, e chega aqui de volta com um olho roxo ou duas costelas quebradas quando os homens o espancam por ser veado quando estão bêbados. Não tenho por que me preocupar. Ele tem sete vidas como os gatos.” [pág. 156]


A narrativa de Donoso é simples, fluida, porém muito forte por questionar preconceitos tão enraizados não apenas na sociedade chilena, e intercala passado e presente para construir a história desse vilarejo que está predestinado a chegar ao fim, mas que, apesar das dificuldades, resiste na esperança de dias melhores. 

DONOSO, José. O lugar sem limites. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 160pp. Tradução: Heloisa Jahn.

domingo, 16 de março de 2014

Elvis e Madona (uma novela lilás)

Inusitado. Irreverente. Inovador. São muitos os adjetivos que eu poderia usar para falar desse livro. Mas vou usar o que me fez ficar acordada até tarde para terminar de lê-lo de uma vez só, tão curiosa que eu estava para saber como é que uma história assim ia acabar: divertidíssimo.

É importante começar dizendo que nesse caso o que surgiu primeiro foi o filme e não o livro, como de costume. Como assim? O cineasta Marcelo Laffite, depois de filmar Elvis e Madona, escreveu para o Luiz Biajoni e perguntou: será que essa história não cabe num livro?Não é que deu certo?. Ainda não vi o filme, pois foi o livro que me encontrou primeiro; pelo que li, acho que não tem como se decepcionar; pretendo assistir em breve e tentar imaginar enquanto eu estiver assistindo que  o filme é que é o "original", experiência única e sem dúvida também muito interessante. Se você já viu o filme, não deixe de ler o livro, porque são sempre duas viagens bem diferentes.

Elvis e Madona (uma novela lilás) conta uma história de amor improvável, narrada com muito humor para tratar de sexualidade e dos papéis de gênero a que estamos habituados: Elvis é uma mulher de 30 anos que sempre gostou de mulheres até o dia em que conheceu Madona (que na verdade é Adaílson), que sempre gostou de homens e há anos é um dos travestis mais famosos de Copacabana. Os dois sempre sofreram todo tipo de preconceito por não se encaixarem nos papéis clássicos que a sociedade espera de uma mulher e de um homem. Por conta disso, ambos deixaram sua cidade natal, para fugir dos olhares de estranhamento e preconceito que já estavam afetando até mesmo suas famílias, e se mudam para o Rio de Janeiro, vão viver em Copacabana. Copacabana que aparece aqui como um lugar visto por alguns como sinônimo de decadência e degradação, mas que é onde os personagens dessa história se reinventam e encontram pessoas boas, que trabalham para sobreviver e que sempre estão dispostas a se ajudar. Mas há também o lado triste da violência, do tráfico de drogas, da corrupção, numa aceitação de uma falta de esperança nessa realidade perdida que já não se pode mudar.

A forma como o autor compõe os personagens, abordando a questão da sexualidade de forma direta e sem rodeios, falando de suas angústias e seus conflitos para assumir o que são, e para serem o que querem ser, é o que os torna extremamente humanos. Os sentimentos e os sonhos desses personagens nos fazem rever durante toda a leitura nossos conceitos e preconceitos. E contando essa história de amor inusitada entre uma lésbica e um travesti o autor faz os próprios personagens repensarem seus dogmas e seu papel no universo que construíram para si. Também os fazem repensar como compreendem o amor, fugindo de todos os clichês possíveis.

Um livro recomendado não só para quem se interessa por questões de gênero, sexualidade e identidade, mas para todos que gostam de uma história de amor divertida e diferente.

BIAJONI, Luiz. Elvis e Madona - uma novela lilás. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010. Baseado no filme homônimo de Marcelo Laffite.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Hoje escrevemos ao coronel



Eu ainda era menina quando ouvi falar dele pela primeira vez. Devo a minha mãe, que desde cedo me falava dos livros que ela havia lido e amado quando era da minha idade (e com isso plantava no meu peito o desejo de ler que até hoje me acompanha), o meu amor pela literatura. Lembro que um dos primeiros livros que ela comentou comigo, livros que ela tinha lido e devorado, de tão bom que eram, haviam sido escritos por ele. Eu achava os títulos belíssimos e intrigantes: como deveria ser uma história que falasse de cem anos de solidão? Como seria um amor nesses tempos de cólera? A minha imaginação fervia de curiosidade. O desejo de ler essas histórias foi tão grande, que fiz minha mãe ir comigo a um sebo, porque eu precisava ler esses livros e ela já não os tinha mais. Comecei a ler Gabo nessa época, e acho que um começo assim é a garantia mais certa de um caminho infinito e cheio de encantamentos a percorrer com os livros. Tive a sorte de ter um começo assim. E esses dois livros desde então permanecem na minha lista de favoritos. Já gostei de livros que ficaram por um tempo nessa lista, e que depois deixaram de ser tão importantes. Paixão de momento. Mas os de Gabo não. Eles permanecem.


Anos depois, na faculdade, chegou a vez de relê-los. E eu me encantei novamente com a árvore genealógica dos Buendía, e sonhei com uma chuva de flores amarelas. Foi aí que eu descobri que as grandes histórias são mesmo eternas. E que não nos cansamos nunca de reler os escritores, aqueles que permanecem, porque os livros que eles escrevem são infinitos. E talvez seja por isso que, quando alguém me pergunta "que livro você levaria para ler em uma ilha deserta?" a primeira opção que sempre passa pela minha cabeça é Cem Anos de Solidão. Um livro que eu já li duas vezes, e estou certa de que ainda será lido muitas vezes durante a minha vida. E cada leitura será diferente, apenas uma versão das infinitas possibilidades de um livro mágico.

Hoje escrevemos ao coronel para celebrar seus 87 anos de vida e agradecê-lo pelos livros infinitos, que tornam o caminho da literatura algo muito mais interessante de percorrer. Feliz Aniversário, Gabo.



Gabriel Garcia Márquez nasceu em 6 de março de 1927 em Aracataca, Colômbia. É escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano. Considerado um dos autores mais importantes do século 20, ele foi premiado com  o Nobel de Literatura em 1982 pelo conjunto de sua obra, que entre outros livros inclui o aclamado Cem Anos de Solidão. Foi um dos precursores do realismo mágico na literatura latino-americana. E é um dos escritores preferidos deste blog.

Em abril de 2009 declarou que se aposentou e que não pretendia escrever mais livros. Essa notícia viu-se confirmada em 2012, quando o seu irmão, Jaime Garcia Márquez, noticiou que em virtude do tratamento contra o câncer, os sintomas de demência senil se agravaram e Gabriel Garcia Márquez, embora esteja em bom estado físico, sofre lapsos de memória e não voltará a escrever.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Jesus Cristo bebia cerveja

A expectativa em relação a este livro não podia ser maior. Foram muitos os comentários que ouvi sobre o escritor nos últimos meses e estava ansiosa para lê-lo, ainda mais depois de ler a enfática recomendação do Valter Hugo Mãe, um dos meus escritores preferidos, sobre o Afonso Cruz. Minha irmã trouxe este livro de presente para mim lá de Portugal, porque, infelizmente, muitos dos livros do Afonso Cruz ainda não foram publicados no Brasil (e eu não sei o que as editoras estão esperando, com tanta gente ansiosa para ler este escritor). Ontem finalmente aproveitei o feriado carnavalesco para conhecer sua escrita.
A primeira coisa que chama a atenção no Afonso Cruz é certamente os títulos dos livros, que são sempre inusitados e deixam os leitores curiosos e cheios de expectativas. Afonso Cruz definitivamente sabe dar título aos livros. E ficamos ainda mais encantados com ele depois que mergulhamos na leitura e vemos que tudo se encaixa e faz sentido.


A história de Jesus Cristo bebia cerveja se passa em uma pequena aldeia alentejana e conta a vida de Rosa, uma menina que foi abandonada pela mãe ainda criança e cujo pai, desiludido com o abandono da esposa e deprimido por ter perdido a perna em um acidente no trabalho "pegou numa corda e pendurou-se numa figueira. Foi o mais estranho fruto daquela árvore". Sozinha, Rosa passa a morar com a avó, já bem envelhecida e doente, em uma casa pequena na aldeia. Vivem uma vida difícil e sem muitas condições, porque são pobres, e, com a doença da avó, já não tem como cultivar a terra para ganhar algum dinheiro. Rosa é uma menina melancólica e sonhadora, que adora ler histórias de cowboys. A leitura é uma de suas poucas distrações e seu livro favorito é "A morte não ouve o pianista".

"Rosa costuma ler um pouco antes de dormir, até os olhos se apagarem. Lê westerns na maior parte das vezes, lê policiais nas restantes. [...] Para Rosa, o cansaço é o livro mais eficaz, mas quando não consegue dormir um bom western faz o efeito". [pág. 70]

O pastor Ari é o único amigo de Rosa, são amigos desde que eram crianças. Seu sonho sempre foi trabalhar no teatro como ator, e o mais próximo que chegou de realizá-lo foi trabalhar aos sábados na sala de teatro da aldeia como lanterninha durante a projeção de filmes, algo de que muito se orgulha. Com o tempo, eles começam a namorar. Ari se apaixonou completamente por Rosa, mas era um homem simples, do campo, que não sabia muito o que dizer para declarar seu amor, exceto tocá-la. 

"Lembra-te de que quando Deus fecha uma porta abre-nos um livro" - dedicatória do autor para a esposa, contida em um livro de western que o pastor Ari dá de presente a Rosa

Para ganhar dinheiro, Rosa vai trabalhar na casa de um senhor rico da cidade durante a semana e deixa a avó aos cuidados da vizinha. Mas, com o passar do tempo, se sentindo infeliz nesse ambiente, e vendo que a avó não está sendo bem cuidada, deixa o trabalho e volta a morar em casa com a avó, Antónia, que está cada dia mais doente, já não enxerga nem escuta direito, e tem lapsos de memória. A avó sempre teve o sonho de conhecer a Terra Santa, Jerusalém, e Rosa se entristece por saber que Antónia nunca será capaz de realizar esse sonho. Até o dia em que conhece o Professor Borja, um homem das ciências, que "pena a solidão da razão - o último lugar deserto da Terra" [pág. 27]. O professor, um senhor de setenta e sete anos, teve um casamento sem amor, mas que lhe deu uma filha, a quem muito amava. No entanto, sua filha morre aos cinco anos em um acidente doméstico e a esposa, sofrendo com a perda, escolhe ter o mesmo fim e se suicida. O professor Borja sente um grande vazio e, assim como Rosa e outros personagens dessa história, sofre de uma grande solidão.

"De cada vez que deixamos de ser percebidos, morremos. Quando somos enterrados deixamos de ser percebidos por toda a gente, mas quando os outros já não olham para nós, ficamos condenados para um número limitado de pessoas, a uma morte em tudo idêntica à outra. A nossa morte não acontece quando somos enterrados, acontece continuamente: os dentes caem, os joelhos solidificam, a pele engelha-se, os amigos partem. Tudo isso é morte. O momento final é apenas isso, um momento". [pág 89]

Quando conhece Rosa e sua avó, o professor Borja se apaixona perdidamente por Rosa, apesar desta ser muito mais jovem. E ao ver a tristeza de Rosa por não poder realizar o sonho da avó, o professor sugere que transformem a Aldeia em Jerusalém, numa espécie de teatro, apenas para realizar esse sonho de Antónia. Vários outros personagens contribuirão para essa encenação, alguns tocados pelo gesto da neta de tentar dar alguma alegria para a avó doente, outros tentando desmascarar a farsa de Rosa e do Professor. Farsa esta que inclui uma encenação da última ceia, mas nela, segundo o professor e suas teorias, Jesus Cristo bebia cerveja.

"Borja está entusiasmado e nem sente a mentira. Na verdade, acha que todas as geografias se sobrepõem. O sagrado está em todo o lado. Não tanto pelo valor intrínseco, mas pelo valor que lhe damos. Se uma aldeia do Alentejo pode ser Jerusalém, é porque é Jerusalém". [pág. 206]

Esta é uma história sobre o amor, sobre a solidão, sobre a capacidade de transformação do ser humano. Os personagens são bem construídos e tudo se encaixa nessa narrativa elaborada por um poeta-artesão, que está atento a cada detalhe na construção dessa história que é, em si mesma, um objeto a ser contemplado. Os capítulos são curtos, e fluem muito bem durante a leitura, que tem um tom por vezes melancólico, por vezes irônico. Há uma certa dose de humor que diverte, mas não sem deixar de nos emocionar. Foi uma surpresa encontrar no fundo do livro, como um daqueles encartes de publicidade que contém o primeiro capítulo, o livro que tantas vezes Rosa menciona na história: "A morte não ouve o pianista", também de autoria de Afonso Cruz. Foi muito interessante, original e criativa essa abordagem, e diria até homenagem ao poder de contar histórias, a possibilidade de conhecer a história dentro da história que acabamos de ler. Afonso Cruz é, sem sombra de dúvidas, um autor original que vale a pena conhecer e de quem eu pretendo ler outros livros.

"Rosa recorda os tempos em que ouvia muitas histórias, contadas pelo avô, pelo pai, pela avó. Sempre com a lareira acesa, pois uma lareira queima duas coisas: lenha e histórias". [pág.72]

Afonso Cruz. Jesus Cristo bebia cerveja. Portugal: Editora Objectiva, 2012. 248 páginas.

Afonso Cruz nasceu em 1971, em Figueira da Foz, Portugal, e estudou nas Belas Artes de Lisboa, no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira e na António Arroio. É escritor, músico, cineasta e ilustrador. Escreveu oito livros: A Carne de Deus (Bertrand), Enciclopédia da Estória Universal (Quetzal - Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2010), Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho - Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2009), A Contradição Humana (Caminho - Prémio Autores 2011 SPA/RTP), A Boneca de Kokoschka (Quetzal - Prémio da União Europeia para a Literatura), O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (Caminho), Enciclopédia da Estória Universal - Recolha de Alexandria (Alfaguara) e Jesus Cristo Bebia Cerveja (Alfaguara - Prémio Time Out 2012 - Melhor Livro do Ano). Ilustrou, desde 2007, cerca de trinta livros para crianças, trabalhando com autores como José Jorge Letria, António Torrado, Alice Vieira. Também tem publicado ilustrações em revistas, capas de livros e publicidade. (Informações retiradas do blog do Afonso Cruz)