quinta-feira, 24 de abril de 2014

A cabeça do santo

A cabeça do santo é a estreia de Socorro Acioli, que já publicou alguns livros infanto-juvenis, no romance para adultos. Esta é a história de Samuel, um homem que acabou de perder sua mãe, Mariinha, cujo último pedido antes de morrer foi: acender uma vela para o padre Cícero, outra para São Francisco e outra para Santo Antônio, e ir encontrar o pai, que desapareceu há anos, e também sua avó, lá na cidade de Candeia.

A viagem de Samuel de Juazeiro do Norte a Candeia tem um tom de romaria, mas Samuel nunca alimentou a mesma fé pelos santos de sua mãe. Era por ela que fazia aquela viagem tortuosa, a pé, em condições tão difíceis. Samuel também não tinha mais para onde ir, nem mais ninguém no mundo. A viagem sofrida pelas estradas do nordeste me fez lembrar de outras maravilhosas histórias da nossa literatura: do Vidas Secas de Graciliano, do Alto da Compadecida do mestre Ariano, do ritmo de cordel da narrativa de A máquina, da Adriana Falcão. E foi justamente este tom bem brasileiro, regional, que me encantou nesta história.

Chegando em Candeia, no entanto, nada ocorreu como Samuel esperava: sua avó não lhe recebeu bem, seu pai não foi encontrado, provavelmente estava morto, e Samuel, exausto da viagem, ainda foi atacado por um bando de cachorros loucos. Ferido, encontra abrigo contra a chuva no que só mais tarde descobre ser a cabeça oca de um santo Antônio, caída ao lado da estátua do santo, perto de uma colina. É neste abrigo improvisado que Samuel conhece Francisco, com quem estabelece uma nova amizade, e onde ele começa a ouvir diversas vozes: as orações das moças da cidade, que reverberam dentro da cabeça do santo e que só Samuel pode ouvir. Santo Antônio é mais conhecido por ser o santo casamenteiro, então as orações das moças todas continham pedidos, alguns com destinatário já escolhido, outros sem nenhuma dica para o santo. Mas por que todas as mulheres do povoado queriam se casar? Porque o livro é o retrato de uma "tradição" que ainda persiste em grande parte do Brasil: a de que o único destino de uma mulher é o casamento, "porque no sertão, mulher que não casa é mandacaru sem flor" (pág. 75). A euforia de todas as mulheres da história para encontrar o mensageiro de santo Antônio e com isso "cumprir seu destino" é contada com humor e de forma alegórica, o que torna a leitura do livro bem divertida, mas não pude deixar de fazer esta reflexão durante a leitura. Talvez a história não tenha mudado tanto assim desde os tempos de José Lins afinal. O patriarcado ainda persiste com força como vemos na história, onde o prefeito é o dono da região, agindo de forma quase sempre corrupta e de acordo com sua vontade; onde as mulheres sofrem violência e são discriminadas por isso; onde os pais expulsam suas filhas de casa por uma gravidez inesperada, tudo em nome da moral e dos bons costumes: "Diga a sua irmã que, se isso for bucho, ela vá embora dessa casa amanhã mesmo que eu tô velho demais pra aguentar filha malfalada". (pág. 45)

A história do homem que ouvia as mensagens do santo muda a vida de Samuel, causa rebuliço na cidade, antes abandonada, que passa a receber cada dia mais e mais visitantes em peregrinação, fazendo prosperar todo o comércio local. E nesse sentido este livro é também uma reflexão sobre o surgimento dessas crenças que vão crescendo e se modificando ao serem contadas pelo povo.

Samuel, que no início do livro não acredita em muita coisa, depois de cumprir os pedidos de sua mãe e ter modificado a vida de muitas pessoas, não sem tentar tirar algum proveito por ouvir as orações feitas para o santo, termina por encontrar algo em que acredita, cumprindo também ele o seu destino.

A cabeça do santo é um livro bem gostoso de ler, a história é contada com humor e isso dá uma leveza ao texto que envolve o leitor nesse mundo fascinante e mítico do sertão, por isso acredito que agradará a um público bem diverso. Durante a leitura não pude deixar de pensar que este romance tão cheio de imagens da cultura popular brasileira daria uma ótima adaptação, tanto para o teatro quanto para o cinema. E fiquei feliz de ver uma das escritoras da chamada "nova geração" trazendo suas raízes para a literatura. Recomendo a leitura, é um livro brasileiríssimo.

ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das letras, 2014. 170 páginas.

Socorro Acioli nasceu em Fortaleza, em 1975. É jornalista e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro. Foi aluna do prêmio Nobel Gabriel García Márquez na oficina Como Contar um Conto, em Cuba, e publicou diversos livros, entre eles A bailarina fantasma (editora Biruta) e Ela tem olhos de céu (editora Gaivota), que recebeu o prêmio Jabuti de literatura infantil em 2013.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Um teto todo seu


Quando recebeu a encomenda de proferir uma palestra sobre as mulheres e a ficção em duas faculdades frequentadas por mulheres dentro da Universidade de Cambridge, em 1928, Virginia Woolf fez uma reflexão sobre o que é necessário a uma mulher para que ela escreva ficção. Com seu estilo refinado e irônico, num texto cheio de digressões, Virginia deixa claro que, para escrever ficção ou poesia, uma mulher precisa de quinhentas libras por ano e um teto todo seu, de preferência, com tranca na porta. Um espaço que desde sempre foi negado às mulheres que, por conta disso, não puderam produzir tantas obras literárias como os homens sempre fizeram.

Refletindo sobre os espaços da Universidade permitidos aos homens e às mulheres e sobre a diferença nas refeições oferecidas em ambas, Virginia faz uma análise da conquista desse espaço, observando que os homens sempre cuidaram dos negócios e buscaram ganhar mais e mais dinheiro, tendo sido possível para eles investir muito na construção de Universidades para seus filhos. No caso das mulheres, a opressão do casamento e o fato de só bem mais tarde elas terem conquistado o direito de gerenciarem seu próprio dinheiro foram determinantes para que não tivessem acesso às mesmas estruturas, pois não herdaram de suas mães as mesmas condições que os filhos homens herdaram de seus pais. Cada espaço em uma universidade foi conquistado com muito custo e todas essas dificuldades interferiram significativamente em sua produção literária, já que ela depende diretamente do acesso à educação e ao conhecimento. 

Na tentativa de compreender essa raiva que os homens demonstravam em relação às mulheres, claramente identificável pela violência, pela opressão e por diminuí-las diante de suas ações, Virginia busca na vasta literatura escrita por homens sobre as mulheres uma resposta plausível e, diante das mais absurdas afirmações que ela encontra nesses livros, a autora afirma que a raiva que os homens sentem em relação a qualquer crítica ou pensamento próprio vindos de uma mulher deve-se ao fato de que as mulheres são para os homens um espelho no qual eles se veem com o dobro do tamanho, o que sempre serviu para reafirmar sua confiança e autoestima, além de estimular significativamente seu pensamento criativo.

É possível que, quando o professor insistiu de forma um pouco enfática na inferioridade das mulheres, ele estivesse preocupado não com a inferioridade delas, mas com sua própria superioridade. (Woolf, 2014, p. 53)


Era um protesto contra a violação do poder de acreditar em si mesmo. As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho. (Woolf, 2014, p.54)

Analisando também alguns dos romances escritos por mulheres na literatura inglesa, ela observa que quase sempre as mulheres eram mostradas dentro de suas relações com os homens e poucas foram as que tentaram romper com o pré-estabelecido. Virginia reafirma sua tese sobre a necessidade das mulheres de ter um espaço todo seu e, principalmente, condições financeiras para sobreviver e poder escrever, pois a liberdade intelectual depende de coisas materiais (Woolf, 2014, pág. 151). A falta de registro sobre a vida dessas mulheres que escreveram no passado só demonstra o total anonimato e a ausência de condições propícias à produção intelectual. A autora comenta que, para qualquer artista, há dificuldades que precisam ser enfrentadas para produzir sua arte, sendo eles os mais suscetíveis às críticas ou à indiferença, mas que para as mulheres essas dificuldades foram infinitamente maiores. O desencorajamento que recebiam de seus próprios pais e a descrença em sua capacidade criativa por toda parte, inclusive de outras mulheres da época, sem dúvida afetaram a produção dessas escritoras.

Com as oportunidades surgidas após as guerras, as mulheres encontraram um pequeno espaço para ganhar algum dinheiro com sua escrita e também fazendo traduções. A partir do momento que foram remuneradas para isso, apesar de continuarem sendo bastante criticadas por sua vontade de escrever, elas deram os primeiros passos para garantir o direito de pensar por conta própria, de escrever sua história. A literatura, que Virginia descreve de forma bem poética, é o espaço de liberdade pelo qual se deve lutar:

A literatura está aberta a todos. Recuso-me a permitir que você, mesmo que seja um bedel, me negue o acesso ao gramado. Tranque as bibliotecas, se quiser; mas não há portões, nem fechaduras, nem cadeados com os quais você conseguirá trancar a liberdade do meu pensamento
(Woolf, 2014, p. 109)

É enfatizando o esforço no pensamento próprio, e a atitude de se escrever como uma mulher, mas como uma mulher que se esquecera de que era mulher (Woolf, 2014, p.133) é que Virginia pede que as mulheres não desistam de lutar pelo seu espaço na literatura, em uma declaração de amor à leitura e sua capacidade de tornar o mundo um lugar melhor a partir do que lemos e pensamos. A autora deixa clara a necessidade de maior participação das mulheres não apenas na literatura, mas nas demais áreas do conhecimento, demonstrando que há uma escritora em nós, como houve em muitas mulheres que foram silenciadas por uma opressão patriarcal desde sempre, mas que depende do esforço de cada uma lutar para dar voz à sua história.

Tudo o que eu disser aqui sobre o encantamento que a escrita da Virginia Woolf causou em mim será pouco para dizer o quanto eu gostei desse livro, o quanto ele é essencial. Enquanto devorava as páginas de Um Teto Todo Seu eu me perguntava como era possível não ter lido este livro até agora. Como ninguém me obrigou a ler este livro? E é por isso que serei enfática na recomendação: parem o que quer que seja que estejam lendo e leiam Um teto todo seu. Há quase cem anos Virginia Woolf fez algo muito importante por todas nós, mulheres, numa das reflexões mais brilhantes que eu já li. Há no texto de Virginia Woolf uma paixão que nos sacode do lugar comum e desperta em nós a escritora que há muito tempo, desde o início dos tempos, foi sempre silenciada. Que este livro alcance mais e mais mulheres, é o que eu desejo de todo coração.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014. Tradução: Bia Nunes de Sousa.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Adeus, Gabo

Há pouco mais de um mês escrevi sobre ele aqui. Ele, que completava 87 anos e já apresentava sinais de cansaço. Era uma tristeza saber que já não escrevia. E para quem nasceu para escrever e inventar os mundos mais incríveis da literatura, viver sem escrever já deve ter sido uma das muitas mortes que enfrentamos no coração antes de realmente poder partir. Nas semanas seguintes, leitores do mundo inteiro falaram do seu amor por ele em todas as redes sociais. De repente, o espanhol virou a nossa língua do coração para dizermos, todos juntos, feito uma prece: ”Fuerza Gabo”.

O dia hoje terminou cheio de uma tristeza silenciosa, porque as despedidas são sempre tristes, é inevitável. Eu lamento sempre que os bons partam primeiro. E quando eu soube da notícia, que Gabo “se fue”, creio ter visto mesmo uma revoada de borboletas amarelas na minha janela. Chorei como quem chora ao perder um amigo. E perdi. Assim como muitos leitores mundo afora. Logo depois veio a chuva, como acredito também ter acontecido em Macondo. Talvez chova lá por dias. Há quem diga que choverá para sempre na cidade inventada por Gabo, um lugar mágico que nos foi permitido conhecer. Temos uma imensa sorte por isso. Mas eu prefiro acreditar que cada vez que um leitor abrir um de seus livros, que alguém ler uma de suas mágicas histórias, histórias que fizeram tantas pessoas se apaixonarem pela literatura, se olharmos com olhos de quem sabe ver, veremos uma chuva de flores amarelas iluminar Macondo outra vez. A morte não é o fim, leitores, é só o começo de mais uma história. E com tantas histórias incríveis, não se enganem: há tempos que Gabo já é eterno. E permanecerá assim.



Gabriel García Marquez (06-03-1927 / 17-04-2014)

"A vida não é a que a gente viveu, e sim
 a que a gente recorda, e como recorda
 para contá-la"

"Então entraram no quarto de José Arcadio Buendía, sacudiram-no com todas as suas forças, gritaram-lhe aos ouvidos, puseram-lhe um espelho em frente das narinas, mas não conseguiram acordá-lo. Pouco depois, quando o carpinteiro lhe tirava as medidas para o caixão, viram, através da janela, que caía uma chuva de minúsculas flores amarelas. Caíram durante toda a noite sobre a aldeia numa tormenta silenciosa e cobriram os telhados e bloquearam as portas e sufocaram os animais que dormiam à intempérie. Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta e tiveram de varrê-las com pás e ancinhos para que o funeral pudesse passar." Gabriel García Marquéz, in Cem Anos de Solidão.

terça-feira, 15 de abril de 2014

O coração às vezes para de bater


"Antes de mais nada, queria falar do mar. Que é começo de tantas coisas."

"O coração às vezes para de bater" é uma novela juvenil da escritora e tradutora brasileira Adriana Lisboa, escrita com a suavidade de um balançar de ondas na praia de Copacabana, e que conta a história de um casal de adolescentes e do turbilhão de sentimentos que marca esta época de suas vidas.  Dois jovens de quinze anos que estão descobrindo o amor e cujos encontros ocorrem através da paixão pelo skate que os une. 

"Foi na beira do mar que eu conheci, no começo deste ano, a Paloma. Foi também por isso que eu quis falar do mar, aqui, nesta carta, antes de mais nada".

O narrador da história, um rapaz de quinze anos, começa a falar do mar, que é começo de tantas coisas, para falar de sua família e dos problemas de comunicação que enfrenta em casa, e também para nos falar de Paloma, a jovem por quem ele se apaixona completamente. Logo no início, sabemos que Rafael está escrevendo uma carta, mas não sabemos a quem ela se destina (algo que só descobriremos no final), mas é através da escrita que ele consegue superar uma grande perda  que teve que enfrentar inesperadamente. A escrita aparece aqui como uma possibilidade de o salvar das dores do mundo, como uma reflexão, afinal "as palavras organizam as coisas", é o que nos ensina o personagem desta história.

Uma novela com a delicadeza da escrita da Adriana Lisboa, que aborda os conflitos da juventude, o choque entre as gerações, a descoberta do amor e a perda da inocência diante de um acontecimento trágico. Um desses livros que retratam com doçura aqueles muitos momentos em que nosso coração para de bater para nos ensinar a viver.

LISBOA, Adriana. O coração às vezes para de bater. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 80 páginas.

O livro foi adaptado para o cinema no curta homônimo dirigido por Maria Camargo. Informações sobre o filme e entrevista com a autora podem ser achadas aqui.

Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro, em 1970, e já se consagrou como um dos nomes mais importantes da literatura brasileira contemporânea, tendo escrito seis romances, um livro de contos e quatro obras infantojuvenis. Conquistou prêmios importantes como o Prêmio José Saramago. Seus livros foram traduzidos para oito idiomas e publicados em treze países.

sábado, 12 de abril de 2014

Bienal 2014: Eduardo Galeano

Ontem em Brasília teve início a II Bienal Brasil do Livro e da Leitura, que este ano homenageia dois grandes escritores: o uruguaio Eduardo Galeano, autor de obras antológicas como As veias abertas da América Latina e a trilogia Memória do Fogo, e o mestre Ariano Suassuna, considerado por muitos críticos como o maior escritor brasileiro em atividade e um dos grandes defensores da cultura brasileira.




A cerimônia de abertura, realizada no Museu Nacional da República, foi marcada pelo carisma de Eduardo Galeano, que leu trechos de seu mais recente livro, Os filhos dos dias, e encantou a platéia. "Somos filhos dos dias e cada dia merece ter uma boa história para contar", é assim que Galeano apresenta seu novo livro, como bom contador de histórias que é. Um daqueles momentos mágicos que guardamos no coração, e que outros leitores como eu certamente entenderão.

Para sentir um pouco do que foi ver o Galeano ao vivo, recomendo este vídeo de uma entrevista concedida a Emir Sader:




A Bienal acontecerá de 11 a 21 de abril na Esplanada dos Ministérios. Para ver a programação completa da Bienal, acesse: II Bienal Brasil do Livro e da Leitura.


sexta-feira, 11 de abril de 2014

Minha mãe quer que eu escreva.


Escrever é um exercício, é o que costumam dizer os grandes escritores. Metade inspiração, metade dedicação. Talvez mais da metade dedicação. Sem nenhuma pretensão de me dizer escritora, porque não sou, parei para pensar sobre isso de ter um blog, e de como se parece a falar sozinho. É bem provável que ninguém vai ler. Talvez só a sua mãe, se ela souber que você tem um blog. Escrevo aqui nesse blog e em algum caderno perdido pelo simples prazer de escrever. De materializar um pensamento, uma impressão, um momento, talvez uma saudade. Escrever é um hobby, ao qual talvez eu devesse me dedicar um pouco mais. Só que o tempo sempre me engana (ou eu ando enganando o tempo) e isso acaba por não acontecer. 

Quando comecei a escrever em blog, há muitos anos atrás, era algo só para mim, e só há poucos meses que o blog passou a aparecer nos mecanismos de pesquisa do google, vejam só. Porque antes era "um teto todo meu", apesar de virtual, e muito raramente algum desavisado aparecia por aqui, por mero acaso. Os blogs que existiram antes deste já foram apagados faz tempo. No início eram só uns "rabiscos" meus, depois passei a escrever sobre os livros que lia, uma forma de fazer um registro das minhas leituras. Um registro meu. Com isso, acabei por encontrar na blogosfera outras pessoas que gostam de ler tanto quanto eu, que também escrevem em um blog (ou possuem um Vlog) só para ter um espaço para falar dos livros que amamos, nem sempre possível de encontrar no mundo real. E acho que encontrá-las foi uma das melhores coisas em tudo isso. Compartilhar o amor pelos livros é algo que sempre nos enriquece.

Mas todo leitor apaixonado sabe que entre muitos livros lidos há aqueles momentos de ressaca literária, que chega sem avisar e não avisa quanto tempo vai ficar. A visita mais indesejada de qualquer estante. Quando não conseguimos mergulhar em uma nova leitura, quando a concentração nos falta ou, como os portugueses dizem, "não nos apetece ler". E com o tempo cada leitor passa a desenvolver estratégias para driblar os períodos de ressaca, apesar de nem sempre as mesmas estratégias funcionarem (as ressacas literárias costumam ser inteligentes e quase sempre teimosas). Há também aqueles períodos em que a vida fica mais corrida, com muito trabalho, um outro tanto de estudo, que, ou não conseguimos ler, ou não conseguimos escrever sobre o pouco que lemos. Ou estamos lendo muitas coisas teóricas (e pouca literatura). Ou talvez estejamos lendo muitos textos teóricos, lutando bravamente para dominar a tarefa árdua de fazer fichamentos e lendo pouca literatura, porque mesmo em tempos de crise, leitor que é leitor carrega um livro consigo para aproveitar cinco minutos de espera e ler o que for possível. Acho que talvez o meu caso seja o último.

Ontem, no entanto, fui interpelada sobre o blog:

(Mãe) - Filha, e o blog, você não está mais escrevendo?
(Eu, envergonhada) - Pois é, com tanto texto para ler, tanto fichamento para fazer... não escrevo nada há umas três semanas...
(Mãe) - Mas e esses livros que você leu nesses dias? 
(Eu) - Então... não consegui escrever sobre eles...
(Mãe, esperançosa) -  E aqueles seus textos? Tipo aquele do Ipê
(Eu) - ... nunca mais escrevi um...
(Mãe, um pouco desapontada diante do computador) -  É que as pessoas* abrem o seu blog e ficam esperando você escrever alguma coisa. É muito chato chegar aqui e não ter nem um comentário sobre um livro novo...
(Eu, já me sentindo a mais culpada da face da terra) -  Tá bom, mãe, eu vou escrever alguma coisa. 

E assim o blog deixou de ser só meu. E cá estou eu, aproveitando a insônia às 4:30 da manhã para pensar em coisas para escrever. Para deixar minha mãe contente da próxima vez que ela abrir o blog. As noites de insônia nem sempre são produtivas, mas pedido de mãe é quase sempre uma ordem. Enquanto eu fico aqui pensando sobre as minhas leituras, você aí que me lê, bem que você podia deixar um comentário apenas para me dizer um oi (quem sabe hoje?) se eu demorar muito a aparecer por aqui (e se você sentir minha falta). Pode não ser um pedido de mãe, mas talvez funcione. Quem sabe até não resulte em um texto? =]

*tradução do dialeto materno: =eu

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A autoridade (Eduardo Galeano)



"Em épocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saíam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo.
Assim era a vida entre os índios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los.
Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas."

Eduardo Galeano. "A Autoridade". In: Mulheres. Porto Alegre: L&PM, 2013. Tradução: Eric Nepomuceno.