quarta-feira, 14 de maio de 2014

Essa coisa brilhante que é a chuva


Mesmo gostando mais de ler romances, tenho me esforçado nos últimos tempos para ler mais livros de contos. Foi assim que descobri o Marcelino Freire e seus contos incrivelmente fantásticos; foi assim que agora encontrei um conto da Cíntia Moscovich tão incrível* que fiquei morrendo de vontade de ler mais coisas da autora. Foi então que encontrei "Essa coisa brilhante que é a chuva".

A capa e o título já encantam à primeira vista. Essa coisa brilhante que é a chuva podia até ser um mantra de tão bonito e poético. Tirando esse encantamento primeiro, começamos a ler os contos da Cíntia Moscovich e logo nos deparamos com o cotidiano simples de personagens tão reais como eu ou você. Logo no primeiro conto, há um filho que sente ciúmes da mãe e, um pouco tarde, se dá conta de que não cuidou de sua vida como devia, no tempo certo. Depois viramos criança novamente com o conto Mare Nostrum e sua vontade bonita de ver o mar e sentir a liberdade que ele representa ("o mar era uma eternidade" pág.25).

"e, na volta às ondas, a menina encheu a concha de uma das mãos com água e bebeu um gole de mar, como quem chega ao destino depois de uma travessia. Só assim, finalmente, ela pôde suportar o tamanho da liberdade. Só assim, depois do deserto." (pág. 29)

Em Caminho torto para uma linha reta, um cachorrinho transforma a vida de um casal que não esperava gostar tanto dele assim, afinal só tomariam conta do cachorro por uns dias, até encontrarem um dono para ele. A balada de Avigdor desconstrói preconceitos de gênero e nos mostra que cada um tem o direito de ser e fazer o que gosta, e não o que dele ou dela se espera.

Em O brilho de todas as estrelas, um passeio até o jardim com o cão é oportunidade de encontrar consolo para muitas lembranças. Um coração de mãe, com a proximidade da morte e uma epifania, em um final tão bonito, me lembrou muito Clarice. Aos sessenta e quatro enche nosso coração de uma vontade de viver que só os que sobreviveram talvez possam verdadeiramente entender. Tempo de voo retrata a imensidão efêmera de um instante, no momento exato em que ocorre um acidente. Uma forma de herança, o meu preferido, tem um cheiro de saudade, como se adentrássemos aquela casa antiga da infância, povoada de memórias e de sonhos; há um amor bonito pelo pai, e uma casa de cabelos grisalhos que nos ensina a sentir orgulho dos nossos caminhos, do nosso tempo e de nossas próprias histórias.

Há quem diga que a morte está muito presente no livro, mas para mim é um livro cheio de vida, onde os pequenos acontecimentos cotidianos são retratados com delicadeza, tornando a leitura um prazer. É como uma travessia, que mesmo sendo um pouco dolorosa em alguns momentos (e por doloroso quero dizer daqueles momentos em que o coração aperta), nos emociona quando chegamos ao fim com a sensação de que cada instante valeu a pena. É um livro que a Cíntia Moscovich dedica aos que sobreviveram e aos que sobreviverão. E, quando terminei de ler, olhos ainda marejados, só pude pensar nessa coisa fascinante que é a literatura, por nos permitir vivenciar essas (e outras tantas) travessias.

MOSCOVICH, Cíntia. Essa coisa brilhante que é a chuva. Rio de Janeiro: Record, 2012. 140 páginas.

Cíntia Moscovich nasceu em 15 de março de 1958 na cidade de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, é escritora, jornalista e mestre em Teoria Literária, tendo exercido atividades de professora, tradutora, consultora literária, revisora e assessora de imprensa. Dentre vários prêmios literários conquistados, destaca-se o primeiro lugar no Concurso de Contos Guimarães Rosa, instituído pelo Departamento de Línguas Ibéricas da Radio France Internationale, de Paris, ao qual concorreu com mais de mil e cem outros escritores de língua portuguesa. Em 2013, ganhou o primeiro lugar no Prêmio Literário Portugal Telecom, na categoria contos/crônica.

4 comentários:

Tati disse...

Eu vi uma resenha desse livro no Rascunho e fiquei com muita vontade de ler. Agora, com sua resenha tão sensível me deu mais vontade ainda :)
Eu adoro contos e encontrar alguém que nos encante com esse estilo é muito bom!
Beijo!

Anônimo disse...

Gosto muito de contos, principalmente de temáticas como essa. Linda resenha.
Beijo!

Michelle disse...

Eu também negligenciei os contos por muito tempo, mas percebi que o problema era que eu queria lê-los como se fossem romance. Mudei o jeito de ler e agora me apaixonei pelos textos curtos!
E personagens que são gente como a gente? Tô dentro!
bjo

Juliana disse...

Eu não consegui gostar desse livro. Eu tinha acabado de ler um romance maravilhoso da autora, que ofuscou um pouco esse.

Mas que título lindo!