domingo, 31 de agosto de 2014

Um poema de Marina Tsvetáieva

Para meus versos, escritos num repente,                              
Quando eu nem sabia que era poeta,
Jorrando como pingos de nascente,
Como cintilas de um foguete,

Irrompendo como pequenos diabos,
No santuário, onde há sono e incenso,
Para meus versos de mocidade e morte,
- Versos que ler ninguém pensa! -

Jogados em sebos poeirentos
(Onde ninguém os pega ou pegará)
Para meus versos, como os vinhos raros,
Chegará seu tempo.

Marina Tsvetáieva
Maio de 1913.


Marina Tsvetáieva (1892-1941), filha de um professor de história da arte da Universidade de Moscou e de uma musicista, demonstrou muito cedo seu talento para a poesia, da qual hoje é considerada um clássico. Antes da publicação de sua primeira coletânea de poemas Álbum da tarde (1910), saudada pela crítica como uma revelação, já havia escrito grande número de poemas, alguns deles em alemão e em francês, línguas que ela dominava: a primeira pela ascendência materna, a segunda pelo amor pelas letras francesas que lhe infundira seu preceptor, ambas, pelas muitas viagens realizadas em sua primeira mocidade. Nascida e crescida no ambiente da intelligentsia russa que a admirava (são famosas as paixões que ela inspirou a Ossip Mandelchtam e Boris Pasternak), foi desde cedo uma anticonformista. Órfã de mãe (1906) e de pai (1913), casou-se antes dos 20 anos, quando da publicação de sua segunda coletânea, igualmente bem recebida, Lanterna Mágica (1912), com um jovem que viria a ser um oficial do Exército Branco, a quem dedicou os poemas do ciclo O Acampamento dos Cisnes (1917) e de quem teve duas filhas (a segunda morreu de inanição) e um filho. Emigrada para o estrangeiro em 1922, a fim de reunir-se ao marido, viveu na Alemanha, Tchecoslováquia e França por dezessete anos. Apesar de ser "um lobo branco" (uma isolada) também para a emigração russa, Tsvetáieva produziu incansavelmente. "Na vida e na arte", disse dela Pasternak, "Tsvetáieva aspirou sempre, impetuosamente, avidamente, quase com rapacidade, à fineza e à perfeição e, ao persegui-las, atirou-se muito à frente, superou a todos...". Em 1939 Marina voltou com o filho à Rússia, onde já estavam o marido e a filha, que não conseguiu reencontrar (a filha fora condenada a oito anos de trabalhos forçados, o marido, à pena máxima). Em 1941, no auge da invasão nazista, evacuada junto com o filho para a cidade de Elábuga, suicidou-se em 31 de agosto. 

(Informações retiradas da edição brasileira de Indícios Flutuantes)

Tsvetáieva, Marina. Indícios flutuantes (poemas). São Paulo: Martins Fontes, 2006. Prefácio, tradução e seleção de poemas Aurora Fornoni Bernardini.

sábado, 30 de agosto de 2014

O Chão dos Pardais

O chão dos pardais é um livro sobre o poder e como ele determina as relações humanas. Para Dulce Maria Cardoso, esse chão dos pardais, pássaros rasteiros que podiam buscar o céu, mas que ficam sempre pelo chão ou pelas árvores, é uma metáfora da humanidade. E são esses sentimentos mundanos que são trabalhados por Dulce Maria Cardoso em uma narrativa envolvente na qual as vidas dos personagens se entrelaçam, mostrando-nos que nem sempre é possível se libertar tão facilmente dessas relações de poder.

Afonso é um homem de quase sessenta anos, rico e poderoso, casado com Alice, pai de dois filhos, Clara e Manuel, já adultos. O casamento de Afonso e Alice é um casamento de aparências, pois os dois praticamente não dialogam e fingem simplesmente aceitar a rotina e esse pacto social, como um grande teatro a ser representado diariamente, ainda que todos saibam, inclusive Alice, das muitas amantes mais jovens de Afonso. Em uma das muitas viagens de negócios que ele usa como pretexto para viajar com amantes, na verdade mulheres  bonitas e jovens que se prostituem em troca de presentes caros e hotéis e restaurantes de luxo, conhecemos Sofia, a mais recente "amante" contratada por Afonso. Sofia está noiva de Júlio, um homem bom que a ama verdadeiramente e de quem ela também gosta, mas ninguém sabe muito bem sobre o trabalho de Sofia e o que ela faz (e também ao que se submete)  durante as viagens de negócios. Sofia está noiva de Júlio e sabe que precisa contar a verdade para ele, para que ele saiba quem ela é e para que possa amá-la por completo. Mas Sofia não imagina a tragédia que a verdade desencadeará.

Alice é uma dessas personagens que despertam nossa compaixão, pois está mais preocupada com as aparências do que com o próprio relacionamento com o marido ou com os filhos, dos quais ela pouco sabe. Consegue ser muito cruel com Eugênia, uma mulher que nasceu no mesmo dia que ela, mas que teve um destino bem diferente por ser filha dos empregados da família. Eugênia trabalhou a vida inteira para a família de Alice e já aprendeu a tolerar em silêncio a sua crueldade, sabendo que os filhos de Alice, Clara e Manuel, tem mais amor por Eugênia do que pela própria mãe. Alice tem uma vida solitária e vazia, e no decorrer da história está mais preocupada em organizar uma grande festa de aniversário para comemorar os sessenta anos de Afonso e causar inveja em todos da alta sociedade. Alice decide contratar Gustavo, um professor de história que escreve biografias para que ele escreva a biografia de Afonso como seu presente de aniversário para o marido. Enquanto isso, Elisaveta, que enfrentou a fome e o frio em seu país (um país imaginário do Leste), do qual conseguiu fugir (e para isso teve que passar por um grande sofrimento) começa a trabalhar na casa de Alice auxiliando Eugênia nas tarefas domésticas. Apesar de quase não falar a nova língua, Elisaveta se esforça ao máximo para agradar e fazer tudo certo, pois finalmente tem um lugar quente para dormir e algo para comer todos os dias, o paraíso para quem, como ela, já sofreu muito. Alice sempre tentou negar ou fingir não saber que Clara é lésbica, mas Clara encontrou o apoio materno de que precisava na figura de Eugênia. Quando Clara conhece Elisaveta, ela se apaixona perdidamente pela nova empregada  e passa a frequentar muito mais a casa da mãe para poder conversar, dentro das limitações do idioma, e conhecer um pouco mais Elisaveta, que acaba por também se questionar pelo que sente por Clara, algo novo que ela nunca tinha imaginado poder sentir. É muito delicada a forma com que a Dulce Maria Cardoso descreve a descoberta e a aceitação do sentimento entre as personagens.

Já Manuel, o filho médico de Alice e Afonso, está sendo processado por negligência e, por conta das influências e do poder financeiro do pai, há grandes chances de ser inocentado. Manuel tem um relacionamento online com Lily, uma mulher divorciada, mãe de um filho, que mora do outro lado do mundo. Os dois mantêm uma comunicação intensa pela internet e julgam estarem apaixonados, até o dia em que se conhecem pessoalmente e percebem que as expectativas e o que imaginaram são muito diferentes da realidade. Com esse casal, a autora nos permite refletir sobre a fragilidade dos relacionamentos modernos, nesse mundo líquido e virtual, porém também efêmero.

O chão dos pardais é um livro intenso, por vezes doído, com personagens que nos fazem refletir sobre pequenos eventos cotidianos, pequenos, porém cheios de importância e significado, e que poderiam passar despercebidos não fosse o olhar atento de Dulce Maria Cardoso que, com uma escrita encantatória, fala dos silêncios e segredos que entrelaçam as vidas, e também do poder das histórias (e de acreditarmos nelas).

Cardoso, Dulce Maria. O chão dos pardais.  Porto: Edições Asa, 2009. 


Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes, em 1964, na mesma cama onde haviam nascido a mãe e a avó. Tem pena de não se lembrar da viagem no Vera Cruz para Angola. Da infância guarda a sombra generosa de uma mangueira que existia no quintal, o mar e o espaço que lhe moldou a alma. Regressou a Portugal na ponte aérea de 1975.  Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, escreveu argumentos para cinema, gastou tempo em inutilidades. Também escreveu contos. Tem fé, uma família, um punhado de amigos, o Blui e o Clude. Continua a escrever e a prezar inutilidades. Vive em Lisboa.
Publicou em 2001 o seu romance de estreia, Campo de Sangue, Grande Prêmio Acontece, escrito na sequência de uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura. Desde então publicou os romances Os Meus Sentimentos (2005), prêmio da União Europeia para a Literatura, O Chão dos Pardais (2009), prêmio Pen Club, e O Retorno (2011). É autora de duas antologias de contos: Até Nós (2008) e Tudo São Histórias de Amor (2014). Os seus primeiros dois livros infantis, na coleção A Bíblia de Lôá, foram publicados em 2014. Em 2012, foi condecorada com as insígnias de Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras da França. A sua obra está publicada em quinze países e é estudada em diversas universidades. Alguns dos seus contos e romances foram adaptados ou encontram-se em fase de adaptação para cinema e teatro. (Dados biográficos extraídos do site da Wook).
Entrevista da autora sobre o livro O Chão dos Pardais: Aqui

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Persépolis

Persépolis pode ser considerado um romance de formação em quadrinhos no qual a ilustradora iraniana Marjane Satrapi conta a sua própria história e também um pouco da história de seu país. Radicada na França, a ilustradora criou Persépolis para contar a sua história e a história de seu povo para seus amigos europeus que, assim como nós, desconhecemos a complexidade da história iraniana, seus costumes e tradições. Durante a leitura vamos nos dando conta de que muito do pouco que sabemos é uma grande simplificação, estereótipos que reduzem as pessoas e suas histórias a muito pouco. 

O livro começa com Marjane ainda pequena, aos dez anos, na escola em Teerã, narrando em primeira pessoa como foi que com a Revolução Islâmica houve uma retomada bastante conservadora aos costumes antigos, por exemplo, tornando-se obrigatório novamente o uso do véu pelas mulheres, a separação entre meninas e meninos na escola, entre outros.

Marjane, filha de pais modernos e intelectuais, teve a chance de ter acesso a muitos livros, e a ter uma visão contrária ao regime extremista em vigor, por conta do respaldo que tinha da família e da boa situação financeira de que dispunham. Por conta disso, Marjane teve a chance de manifestar sua rebeldia dentro dos limites possíveis em Teerã. A leitura aparece como ponto de apoio e possibilidade de crescimento no decorrer de toda a história.

As figuras femininas como a mãe a avó de Marjane tem grande importância na narrativa e é através da perspectiva social das mulheres que podemos refletir sobre a condição social da mulher não apenas nos países islâmicos. Por trás dos véus, passamos a conhecer essas mulheres reais, suas histórias, seus sonhos, suas crenças e questionamentos, e também seu sofrimento diante da opressão, em suas variadas formas.

A dualidade espaço público x espaço privado pode ser pensada ao longo da narrativa, pois vemos que as limitações e a opressão religiosa existente predominava nos espaços públicos, ao passo que havia uma liberdade maior entre as personagens nos espaços privados. Em suas casas, os iranianos faziam festas frequentemente, consumiam bebidas alcoólicas e tinham mais liberdade para falar e agir, algo oposto à repressão exterior, o que certamente os ajudou a sobreviver em circunstâncias tão difíceis.

Com a guerra, os pais de Marjane decidem que, para protegê-la, é melhor que ela se mude para a França, para poder continuar estudando. É assim que Marjane, uma adolescente de 14 anos, passa a conhecer uma outra realidade, muito diferente do seu país de origem. Na França, a liberdade que ela encontra nos espaços públicos ela perde nos espaços privados. Longe da família e de sua cultura, Marjane enfrenta uma nova realidade: a de ser estrangeira, muitas vezes sofrendo o preconceito e a discriminação que a simplificação resultante de estereótipos e do acesso a uma história única provocam, algo que constantemente é compartilhado pela mídia e tomado como verdade.

Nesse período na França, Marjane está em busca de si mesma, tentando não se perder diante do novo e aprendendo a lidar com as transformações de seu corpo adolescente. O desenvolvimento do corpo das mulheres no decorrer da história nos ajuda a pensar nas diferentes exigências em relação ao corpo, principalmente o corpo feminino, pela sociedade. Nos quadrinhos de Marjane vemos que esse corpo não se reduz ao corpo biológico, mas ao corpo cultural, definido por sua situação social.

Marjane passa por muitas dificuldades durante os anos em que mora na França e, no final, sem ter onde morar, fica vagando pelas ruas em pleno inverno e acaba por adoecer. Depois de ser tratada em um hospital francês, decide voltar para casa, mas esse período traumático que passa nas ruas é silenciado pela dificuldade que sente em o narrar, principalmente para os pais. De volta à Teerã, Marjane não consegue contar muito sobre a sua vida na França, mesmo com a recepção calorosa da família, e acaba por ficar deprimida. Agora ela também se sente uma estrangeira em seu próprio país, pois as experiências que a transformaram e as vivências que teve no exterior são muito diferentes da realidade da guerra daqueles que ficaram no Irã.

Todo o processo de readaptação dessa adolescente, agora uma mulher, ao voltar para casa e se confrontar novamente com as tradições nos possibilita novas reflexões. As discussões sobre o casamento, por exemplo, retomam a dualidade espaço público x espaço privado, pois os casais não podiam andar juntos pelas ruas se não fossem casados, e mesmo os casados tinham que apresentar sua certidão de casamento para isso. É a impossibilidade de viver publicamente seu namoro com o jovem Reza que leva Marjane a aceitar o casamento, para tempo depois se divorciar. Apesar do apoio da família, que aceita sem problemas o divórcio, uma mulher divorciada não é vista com bons olhos pela sociedade iraniana, pois já não são mais virgens e passam a ser abordadas constantemente, pois são consideradas disponíveis para qualquer homem. Após o divórcio, e por orientação dos pais, Marjane retorna à França em definitivo, onde reside até hoje.

Persépolis é um romance em quadrinhos que traz ótimas reflexões e aprendizado sobre um outro universo, que a maioria de nós desconhece, nos faz pensar sobre os perigos de se acreditar em uma história única e simplificada sobre os outros e que, além de tudo, é uma leitura deliciosa.

SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 352 páginas.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Hibisco Roxo

Em Hibisco Roxo, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie conta a história de uma família nigeriana bem sucedida e aparentemente "normal". E por normal aqui eu quero dizer aparentemente feliz. O patriarca da família, Eugene, é um homem rico, que possui várias indústrias e é dono de um dos principais jornais locais. Eugene é um dos homens mais poderosos e respeitados na comunidade e na igreja católica que frequenta, muito em virtude de todas as doações generosas que faz para ajudar a igreja e muitas pessoas da comunidade. Ele é tido como um modelo a ser seguido por sua moral e conduta. Eugene é casado com Beatrice e tem dois filhos: Jaja e Kambili, ambos adolescentes. Os dois estudam em excelentes escolas e moram com os pais em uma casa grande, com todo o conforto que a maioria dos nigerianos desconhece. 
Mas em casa Eugene é um tirano que adora ordem e detesta ser contrariado no que quer que seja, e sempre controla cada passo dos filhos e da esposa. O clima de medo, silenciamento e opressão que reina na casa pode ser observado nos momentos tensos em que se reúnem para as refeições ou para ir à missa. As crianças crescem ouvindo que precisam ser perfeitas, que tem que ser as primeiras de suas turmas e vivem em constante pânico por isso. Estão em constante estado de alerta preocupadas em agradar o pai. 
A religião tem uma grande importância para Eugene, que age de forma obsessiva em nome do discurso religioso. Mas o discurso religioso, quando não é posto em prática nas ações do dia a dia, só gera destruição. Essa é a história de uma família que vai se destruindo por conta a intolerância religiosa e da violência doméstica, pois Eugene renega seu próprio pai por ele não ter se convertido à religião "branca" dos colonizadores que ele foi ensinado a seguir rigorosamente e que agora tenta a todo custo impor aos filhos e à esposa. É também um livro que nos permite analisar a situação da mulher em um tempo não muito distante do nosso, pois ainda hoje muitas mulheres vivem em função do casamento, guiadas pela pressão social que valida a existência de uma mulher somente se ela se casar e tiver filhos. Beatrice, que vive em função do marido e dos filhos mesmo sofrendo de violência doméstica, ainda acha que uma mulher sem marido não é nada. No decorrer da história acompanhamos seu sofrimento em silêncio a cada espancamento que sofre do marido pelas mínimas coisas, surras tão violentas que a fazem abortar diversas vezes, impedindo-a de ter mais filhos e debilitando seriamente sua saúde. O sofrimento dos filhos ao vivenciar tudo isso, crescendo em um ambiente onde ninguém sorri ou conversa, provoca neles sentimentos confusos, que misturam o amor que os filhos naturalmente sentem pelo pai, com o terror de vê-lo como principal causador de seus medos e sofrimentos.
Mas também temos nessa história uma personagem que traz um pouco de alívio depois de tantas páginas em que sofremos juntos com essa família: a tia Ifeoma, irmã de Eugene, uma professora que ficou viúva de um homem que sempre a respeitou nunca a agrediu, e que mostra que há mais caminhos para as mulheres do que o casamento. É com amor e liberdade de diálogo, ensinando aos filhos e sobrinhos a questionarem o mundo e dizer o que sentem, buscando o conhecimento através da educação,  que Ifeoma consegue ajudar Jaja e Kambili a se libertarem da opressão em que vivem.
Um livro que eu gostaria que todos lessem, por todas as coisas que ele nos faz sentir e pensar. Uma história linda, sofrida, mas com toda a poesia das descrições quase que sensoriais de Chimamanda Adichie, que nos transporta pelas ruas da Nigéria, onde podemos sentir o cheiro do caju e dos hibiscos roxos. Não sei recomendá-lo o suficiente. Leiam!

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 324 páginas

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Um homem: Klaus Klump

"Um homem: Klaus Klump" é o primeiro livro da tetralogia O Reino, de Gonçalo M. Tavares. É certamente um livro sobre muitas coisas, mas a narrativa perturbadora deste romance fala sobre a vida em tempo de guerra e de paz, uma alegoria da condição humana e das relações de domínio e submissão que os homens desenvolvem para sobreviver.
O enredo conta a história de um homem, Klaus Klump, que edita livros perversos. Ele não demonstra muito apreço por sua pátria ou pelas pessoas que o cercam, mas seria capaz de morrer pelos seus livros. Klaus é casado com Johana, uma mulher bonita que ama Klaus, apesar de não o compreender. A mãe de Johana é doente, enlouqueceu. É Johana quem cuida dela, todos os dias. Enquanto Klaus procura não se envolver com os problemas da pátria, porque "Não ver nada é ficar oculto", a cidade onde moram é ocupada por militares. Johana e muitas outras mulheres são violentadas pelos soldados, como sempre, as primeiras vítimas de uma guerra que transforma os homens em seres primitivos. Klaus é preso e passa anos na prisão longe da mulher. E a partir daí o que vemos é uma luta de forças, dos fortes e dos fracos que se tornam fortes, tentando a todo custo sobreviver.
O que mais chamou minha atenção neste romance foi a forma como as mulheres são retratadas na história, objetificadas, submissas, sem ter sua própria voz. A única exceção é Herthe, a jovem bonita que mantém um bom relacionamento com os soldados durante a guerra sendo amante de muitos dos líderes e que dessa forma consegue sobreviver e proteger sua família, mesmo que para isso tenha denunciado várias pessoas para os inimigos. Com isso, Herthe, a única mulher descrita como sendo forte, é também descrita como a mais vil. A violência contra as mulheres é gritante e choca o leitor até o final. Não é à toa que essa tetralogia é também chamada "os livros do mal". Mas o que Gonçalo Tavares consegue com brilhantismo nesta narrativa perturbadora é nos fazer refletir sobre o ser humano em sua essência, destacando os sentimentos mais obscuros que carregam dentro de si,  e sobre o que ele é capaz de fazer (ou de tolerar) para sobreviver. 
Um livro mais do que recomendado, mas aviso aos corações sensíveis: contém cenas fortes.

"Os tanques passam nas ruas. As ruas têm o nome dos nossos heróis. Eles não conhecem a língua: não sabem dizer o nome. Tropeçam na pronúncia, não conseguem acentuar as sílabas. E os tanques não têm tempo para aprender línguas.
Klaus deixou o seu ofício, mas apenas hoje. Trabalha numa tipografia, mais: é editor, quer fazer livros que perturbem os tanques em definitivo.
Isso não é um livro, é uma pequena bomba.
Queres perturbar tanques com prosa?"
(TAVARES, 2007, p.10-11)

TAVARES, Gonçalo. Um homem: Klaus Klump. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 115 páginas.


Gonçalo Tavares nasceu em Luanda, em 1970, tendo ido logo a seguir para Portugal. É escritor e professor universitário português. Premiado e elogiado pela crítica, estreou em 2001 com Livro da dança, e vem se firmando como uma das maiores vozes do romance português contemporâneo. De sua autoria, já foram publicados no Brasil O homem ou é tonto ou é mulher, 1, O senhor Valéry, A máquina de Joseph Walser, Aprender a rezar na era da técnica e Jerusalém (prêmio José Saramago 2005), Uma viagem à Índia, entre outros.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Um poema de Ondjaki

vou escrever na pedra a palavra amor - inventar uma textura na minha estória pessoal. há uma ruga na pedra sulcada pela minha lágrima. se a pedra sorrir vou me esconder no riso dela. se o vento vier vou alisar o tempo perdido e construir memórias.
primeiro vou beijar a mulher, depois a pedra.

se sobrarem beijos, vou atirá-los a favor do vento.

Ondjaki, in "Materiais para a confecção de um espanador de tristezas"