sábado, 30 de agosto de 2014

O Chão dos Pardais

O chão dos pardais é um livro sobre o poder e como ele determina as relações humanas. Para Dulce Maria Cardoso, esse chão dos pardais, pássaros rasteiros que podiam buscar o céu, mas que ficam sempre pelo chão ou pelas árvores, é uma metáfora da humanidade. E são esses sentimentos mundanos que são trabalhados por Dulce Maria Cardoso em uma narrativa envolvente na qual as vidas dos personagens se entrelaçam, mostrando-nos que nem sempre é possível se libertar tão facilmente dessas relações de poder.

Afonso é um homem de quase sessenta anos, rico e poderoso, casado com Alice, pai de dois filhos, Clara e Manuel, já adultos. O casamento de Afonso e Alice é um casamento de aparências, pois os dois praticamente não dialogam e fingem simplesmente aceitar a rotina e esse pacto social, como um grande teatro a ser representado diariamente, ainda que todos saibam, inclusive Alice, das muitas amantes mais jovens de Afonso. Em uma das muitas viagens de negócios que ele usa como pretexto para viajar com amantes, na verdade mulheres  bonitas e jovens que se prostituem em troca de presentes caros e hotéis e restaurantes de luxo, conhecemos Sofia, a mais recente "amante" contratada por Afonso. Sofia está noiva de Júlio, um homem bom que a ama verdadeiramente e de quem ela também gosta, mas ninguém sabe muito bem sobre o trabalho de Sofia e o que ela faz (e também ao que se submete)  durante as viagens de negócios. Sofia está noiva de Júlio e sabe que precisa contar a verdade para ele, para que ele saiba quem ela é e para que possa amá-la por completo. Mas Sofia não imagina a tragédia que a verdade desencadeará.

Alice é uma dessas personagens que despertam nossa compaixão, pois está mais preocupada com as aparências do que com o próprio relacionamento com o marido ou com os filhos, dos quais ela pouco sabe. Consegue ser muito cruel com Eugênia, uma mulher que nasceu no mesmo dia que ela, mas que teve um destino bem diferente por ser filha dos empregados da família. Eugênia trabalhou a vida inteira para a família de Alice e já aprendeu a tolerar em silêncio a sua crueldade, sabendo que os filhos de Alice, Clara e Manuel, tem mais amor por Eugênia do que pela própria mãe. Alice tem uma vida solitária e vazia, e no decorrer da história está mais preocupada em organizar uma grande festa de aniversário para comemorar os sessenta anos de Afonso e causar inveja em todos da alta sociedade. Alice decide contratar Gustavo, um professor de história que escreve biografias para que ele escreva a biografia de Afonso como seu presente de aniversário para o marido. Enquanto isso, Elisaveta, que enfrentou a fome e o frio em seu país (um país imaginário do Leste), do qual conseguiu fugir (e para isso teve que passar por um grande sofrimento) começa a trabalhar na casa de Alice auxiliando Eugênia nas tarefas domésticas. Apesar de quase não falar a nova língua, Elisaveta se esforça ao máximo para agradar e fazer tudo certo, pois finalmente tem um lugar quente para dormir e algo para comer todos os dias, o paraíso para quem, como ela, já sofreu muito. Alice sempre tentou negar ou fingir não saber que Clara é lésbica, mas Clara encontrou o apoio materno de que precisava na figura de Eugênia. Quando Clara conhece Elisaveta, ela se apaixona perdidamente pela nova empregada  e passa a frequentar muito mais a casa da mãe para poder conversar, dentro das limitações do idioma, e conhecer um pouco mais Elisaveta, que acaba por também se questionar pelo que sente por Clara, algo novo que ela nunca tinha imaginado poder sentir. É muito delicada a forma com que a Dulce Maria Cardoso descreve a descoberta e a aceitação do sentimento entre as personagens.

Já Manuel, o filho médico de Alice e Afonso, está sendo processado por negligência e, por conta das influências e do poder financeiro do pai, há grandes chances de ser inocentado. Manuel tem um relacionamento online com Lily, uma mulher divorciada, mãe de um filho, que mora do outro lado do mundo. Os dois mantêm uma comunicação intensa pela internet e julgam estarem apaixonados, até o dia em que se conhecem pessoalmente e percebem que as expectativas e o que imaginaram são muito diferentes da realidade. Com esse casal, a autora nos permite refletir sobre a fragilidade dos relacionamentos modernos, nesse mundo líquido e virtual, porém também efêmero.

O chão dos pardais é um livro intenso, por vezes doído, com personagens que nos fazem refletir sobre pequenos eventos cotidianos, pequenos, porém cheios de importância e significado, e que poderiam passar despercebidos não fosse o olhar atento de Dulce Maria Cardoso que, com uma escrita encantatória, fala dos silêncios e segredos que entrelaçam as vidas, e também do poder das histórias (e de acreditarmos nelas).

Cardoso, Dulce Maria. O chão dos pardais.  Porto: Edições Asa, 2009. 


Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes, em 1964, na mesma cama onde haviam nascido a mãe e a avó. Tem pena de não se lembrar da viagem no Vera Cruz para Angola. Da infância guarda a sombra generosa de uma mangueira que existia no quintal, o mar e o espaço que lhe moldou a alma. Regressou a Portugal na ponte aérea de 1975.  Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, escreveu argumentos para cinema, gastou tempo em inutilidades. Também escreveu contos. Tem fé, uma família, um punhado de amigos, o Blui e o Clude. Continua a escrever e a prezar inutilidades. Vive em Lisboa.
Publicou em 2001 o seu romance de estreia, Campo de Sangue, Grande Prêmio Acontece, escrito na sequência de uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura. Desde então publicou os romances Os Meus Sentimentos (2005), prêmio da União Europeia para a Literatura, O Chão dos Pardais (2009), prêmio Pen Club, e O Retorno (2011). É autora de duas antologias de contos: Até Nós (2008) e Tudo São Histórias de Amor (2014). Os seus primeiros dois livros infantis, na coleção A Bíblia de Lôá, foram publicados em 2014. Em 2012, foi condecorada com as insígnias de Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras da França. A sua obra está publicada em quinze países e é estudada em diversas universidades. Alguns dos seus contos e romances foram adaptados ou encontram-se em fase de adaptação para cinema e teatro. (Dados biográficos extraídos do site da Wook).
Entrevista da autora sobre o livro O Chão dos Pardais: Aqui

2 comentários:

Anônimo disse...

Mais uma escritora portuguesa que vai entrar para minha lista. Adorei a resenha, parece uma história bastante envolvente. Aliás, é difícil não se deixar fisgar pelos escritores portugueses de uma forma geral, até mesmo Eça de Queirós está me parecendo convidativo. Você já viu a edição linda de Os Maias, da editora Zahar?

Beijos

Pipa disse...

Vi e achei linda essa edição, pena que é cara :)
Eu sou apaixonada por literatura portuguesa, e adorei ler a Dulce, já comecei a ler outro dela :)

beijo,
Pipa