domingo, 22 de novembro de 2015

Feliz Ano Velho


Feliz Ano Velho é um romance testemunho, narrado em primeira pessoa por Marcelo, narrador-personagem dessa história. É um romance sobre o passado, pois relata sua juventude e como tudo mudou a partir do momento em que ele sofre um acidente ao pular em um lago raso e fraturar a coluna na queda. Por conta do acidente, Marcelo fica paralisado do pescoço para baixo. Por meio desse testemunho de tudo o que passou no hospital durante os meses em que ficou internato, tomamos conhecimento de seu sofrimento e de sua luta para recuperar pelo menos uma parte dos movimentos.

Marcelo passa por uma cirurgia e, após alguns meses no hospital em tratamento consegue recuperar o movimento dos braços, mas permanece paraplégico. Durante o período em que está no hospital fazendo fisioterapia e angustiado diante da possibilidade de nunca mais ter os movimentos e a sua vida de volta, ele relembra a sua infância, quando o pai, o deputado Rubens Paiva, é sequestrado e morto pelos militares na ditadura militar brasileira, assim como outros momentos que marcaram sua juventude, o convívio com os amigos na época da universidade, sua relação com a música e com as mulheres. Contudo, a ditadura militar não é o tema central desse romance, uma vez que o tema só aparece em determinado momento da narrativa quando Marcelo relembra o dia em que o pai foi levado pelos militares, descrevendo o medo que sentiu e o sofrimento de sua mãe que continuou por muito tempo a procurá-lo. Ainda assim, é um testemunho importante do que de fato ocorreu com tantas pessoas durante a ditadura militar em nosso país.

Mas Feliz Ano Velho fala de Marcelo. Do que ele sentia, do que ele se lembrava enquanto estava no hospital, dos muitos amigos que estiveram ao seu lado durante esse período de recuperação, enfim, é um exemplo dessa escrita de si. O livro é um testemunho interessante e importante em nossa literatura por trazer uma realidade pouco discutida pela maioria das obras que é a questão da deficiência. Para comprovar isso basta tentar lembrar: quantos personagens com alguma deficiência física você lembra de já ter lido?

Entre lembranças de sua juventude na universidade, dos seus relacionamentos com as garotas, e outras lembranças de sua vida às quais ele recorre como que para fugir da situação de paralisa em que se encontrava no hospital e que exigia muita paciência, aos poucos, Marcelo toma consciência de que não voltará ao que era no passado e que é preciso seguir em frente. O processo de negação inicial dá lugar a um Marcelo consciente de que está paraplégico e que terá que reconquistar sua independência em cada pequena ação do dia a dia, sem deixar de notar as dificuldades e o preconceito que as pessoas com alguma deficiência física enfrentam nas cidades brasileiras, onde a acessibilidade ainda hoje, 30 anos depois da publicação do romance, não é ideal. É nesse momento que o foco do romance parece mudar um pouco, demonstrando o amadurecimento do personagem ao descobrir sua força para lidar com essa nova situação, reencontrando na escrita uma forma de tratar do assunto, compartilhar experiências e também de trabalho. Nesse sentido o livro traz informações importantes sobre a dificuldade de adaptação que pessoas como Marcelo tiverem que enfrentar, mas mostrando, de forma positiva, que é possível viver bem e superar as dificuldades.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Flores


"De tarde, senti cheiro a fumo. Fui à janela e percebi que a biblioteca estava a arder, o fogo cuspia chamas pelas janelas. Os bombeiros ainda não tinham chegado, mas havia muita gente na rua. As sereias já se ouviam ao longe e não tardou a chegar um carro. Acendi um cigarro enquanto bebia um café. Reparei que o senhor Ulme se encontrava entre a multidão, a cabeça inclinada, a passar repetidamente as mãos pela cabeça. Afastou-se um pouco e, sem que ninguém notasse, entrou pela porta lateral do edifício em chamas. Fiquei perplexo e cheguei a gritar, mas ninguém me deu atenção. Os bombeiros chegaram enquanto eu corri para a rua. Da porta lateral da biblioteca surgiu o senhor Ulme com um livro na mão. Os bombeiros já regavam o edifício. O senhor Ulme dirigiu-se para o nosso prédio, interpelei-o, criticando a insensatez da sua atitude. Encolheu os ombros e disse:
- É o meu livro favorito."

CRUZ, Afonso. Flores. Lisboa: Companhia das Letras, 2015. p. 99

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Os bebês de Auschwitz



Uma vez escutei alguém dizer que não havia mais nada a ser escrito sobre Auschwitz, que tudo já havia sido dito nos diversos livros e filmes sobre o assunto. Penso que não. E para concordar comigo basta pensar nas 6 milhões de pessoas que foram exterminadas, levando consigo seus sonhos e histórias de vida, sobre as quais nunca saberemos. Ou ler relatos devastadores, escritos pelos próprios sobreviventes, como os de Elie Wiesel, em Noite, para ter a certeza de que essas histórias precisam sempre ser recontadas.
Livros como o da jornalista Wendy Holden são importantes na medida em que trazem à tona histórias como as de Priska, Rachel e Hanka, três mulheres de extraordinária força, que nos ensinam muito sobre o que o ser humano é capaz, tanto para o bem quanto para o mal. Sim, livros sobre o Holocausto são sempre dolorosos, porém necessários. Tratam de histórias que, ainda que absurdas de tão cruéis que são, mostram o que a intolerância e o ódio podem produzir. São histórias que não podemos deixar que sejam esquecidas, para que não se repitam.
Diferente de outros relatos pessoais, escritos por sobreviventes dos campos de concentração nazistas, este é o relato de uma jornalista norte-americana que decidiu contar a história de três mulheres, de países e classes sociais diferentes, todas levadas aos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Wendy nos conta quem foram essas mulheres, como viviam com suas famílias, o que estudaram, como se apaixonaram pelos seus maridos e todos os sonhos que alimentavam até 1938, quando Hitler começou a impor restrições aos judeus. Nesse sentido, o livro mostra como essas restrições foram progredindo durante anos, retirando dos judeus os seus direitos mais básicos, prendendo-os nos guetos onde as condições de vida já eram absurdas, até culminar em sua total desumanização nos diversos campos de concentração da Europa.
Essas três mulheres, que não se conheciam, foram levadas a Auschwitz em 1944, ainda no início da gravidez. Separadas dos maridos, elas contaram com a intuição e com a sorte ao serem interpeladas, logo na chegada, pelo médico Josef Mengele, conhecido como o médico da morte, que buscava identificar entre as mulheres aquelas que estavam grávidas. Afinal, para os nazistas, era proibido trazer mais um judeu ao mundo. Sujeitas a todo tipo de constrangimento nessas inspeções, algumas mulheres grávidas foram levadas pelo médico, que as torturava com "experimentos médicos" da maior crueldade. O mesmo era feito com pessoas com alguma deficiência e com crianças gêmeas que Mengele identificava logo na chegada aos campos. E creio que não é possível não se revoltar ao saber que Mengele fugiu, permanecendo impune de todos os crimes, morrendo no Brasil muitos anos depois, onde vivia com um nome falso.
Por sorte, essas três mulheres grávidas conseguiram mentir e enganar o médico alemão, escondendo de todos a sua gravidez. Cada uma das mulheres se viu responsável por lutar por sua vida e pela de seu bebê, e foi esse amor materno que deu forças a elas para suportarem situações inimagináveis. Elas tinham também a esperança de que a Guerra logo acabaria e elas poderiam ainda reencontrar seus maridos.

Wendy Holden fez uma vasta pesquisa, baseando-se em entrevistas, cartas e diários, para reconstruir a história de Priska, Hanka e Rachel e de seus filhos, Eva, Mark e Hana, todos três nascidos no campo de Mauthausen, na Áustria, para onde as mães haviam sido levadas já próximo ao final da guerra. Contando com ajudas inesperadas, as três mulheres, por sorte ou milagre, conseguiram ter os bebês e mantê-los com vida apesar das longas viagens de trem no frio rigoroso do inverno, das condições de higiene degradantes, da fome (elas pesavam menos de trinta quilos quando os bebês nasceram), com sede, exaustas dos trabalhos forçados e emocionalmente destruídas diante de tudo que haviam presenciado até ali.
É impossível não se comover com essa história, que detalha a eficiência com que os nazistas exterminaram milhões de judeus - e nessas horas é preciso respirar fundo por que a violência dos relatos é sempre perturbadora - mas que mostra também a força dessas mulheres, que, por sorte, conseguiram resistir aos maiores sofrimentos. E nos momentos em que a bondade foi inesperada, e por conta delas talvez as três mulheres tenham sobrevivido, é que entendemos por que seus filhos ficaram conhecidos como "bebês-milagre".
O livro também traz informações interessantes para mostrar que o sofrimento dessas pessoas, que não sei se podem ser chamadas "sobreviventes" (retomo a pergunta de Elie Wiesel: é possível sobreviver a um campo de concentração?), foi algo com que tiveram que lidar durante o resto de suas vidas. Depois da libertação dos campos pelos soldados estadunidenses, com o fim da guerra, todos eles tiveram que enfrentar viagens longas de volta para "casa" (no caso delas, de trem, mas em relatos como o de Primo Levi, em A Trégua, sabemos que muitos sobreviventes levaram mais de 6 meses para conseguir voltar para suas casas, muitas vezes caminhando longos trechos, mesmo tão debilitados como estavam). E sofreram ao não encontrar mais suas casas (muitas haviam sido roubadas) e, o mais difícil de tudo, não reencontrar mais nenhum membro de suas famílias com vida. Esse recomeço difícil é uma parte importante da história que costuma ser pouco comentada pois, não bastasse tudo o que viveram, muitos deles foram hostilizados nas ruas depois de terem sido libertados dos campos de concentração. O sofrimento de já não pertencer a nenhum lugar depois do que viveram é algo que fez parte da vida deles para sempre.

Questionamentos desse tipo são levantados por Wendy Holden, que em alguns momentos questiona o silêncio dos que nada fizeram para impedir o que de mais absurdo e desumano acontecia nos campos de concentração próximos a algumas cidades, como o de Mauthausen, onde os bebês nasceram. O sentimento de vingança que muitos sentiram contra os alemães também é comentado no livro em uma das respostas que Rachel dá ao filho, já um rapazinho:
"Seus pais se recusavam a ter qualquer coisa alemã, inclusive carro. Talvez não seja de espantar que, quando lhe perguntavam o que ele queria fazer quando crescesse, Mark respondesse: "Matar o maior número de alemães possível". Rachel ralhava. "Já perdemos tudo e todo mundo. Se perdermos nossa humanidade, perderemos a única coisa que não precisávamos perder." Só nos anos finais de vida é que Rachel admitiu que a geração responsável pelo que havia acontecido na Europa não existia mais". (pág. 319)
Priska, Rachel e Hana já faleceram, mas seus três filhos, que se reencontraram já adultos nos Estados Unidos, onde moram hoje, descobriram que não eram os únicos "bebês-milagre". Juntos, 70 anos depois do final da guerra, eles permitiram que a jornalista Wendy Holden escrevesse as suas histórias em homenagem à coragem e força de suas mães. Os bebês de Auschwitz é um livro impactante, que merece ser lido e que traz uma impressionante história sobre o amor materno, a persistência, a coragem. Ele também nos ensina sobre um período sombrio de nossa história, conhecimento fundamental para que ele não se repita.
"As almas de suas mães e de milhões de outras pessoas que morreram durante a guerra merecem que sua história seja contada e recontada, para jamais ser esquecida. "Tentamos viver a vida da melhor maneira possível, preenchendo esse espaço tão vazio", diz Hana. "Em memória à memória delas, cada dia que nasce é uma nova promessa" (p. 349)
HOLDEN, Wendy. Os bebês de Auschwitz. São Paulo: Globo Livros, 2015. Tradução: Bruno Alexander.
*Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora Globo Livros.

sábado, 10 de outubro de 2015

Um poema de Ana Martins Marques

O que eu sei

Sei poucas coisas sei que ler                                                
é uma coreografia
que concentrar-se é distrair-se
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor
sei poucas coisas esqueço rápido coisas
que sei sei que esquecer é musical
sei que o que aprendi do mar não foi o mar
que só a morte ensina o que ela ensina
sei que é um mundo de medo da vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no
tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que a intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas

Poema de Ana Martins Marques, do belíssimo "O livro das semelhanças" (Companhia das Letras, 2015)

***
Ana Martins Marques nasceu em 1977, em Belo Horizonte. Graduada em Letras, tem mestrado em literatura brasileira pela UFMG. É autora de A vida submarina e Da arte das armadilhas, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional em 2012.

sábado, 3 de outubro de 2015

Sonhos em tempo de guerra



Sonhos em tempo de guerra é o primeiro volume de memórias do escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong'o. Nascido em 1938, em uma região rural do Quênia, ele cresceu sob o impacto da Segunda Guerra Mundial nas colônias britânicas. Este primeiro volume reúne as memórias de infância, nas quais o autor relembra o cotidiano e as peculiaridades de sua família (seu pai era casado com quatro esposas, e todas viviam próximas umas das outras, cuidando dos 24 filhos que formavam ao todo essa família) e, principalmente, destaca como as histórias da tradição oral ouvidas na sua infância, ao redor do fogo e em conversas em sua aldeia, contribuíram para que ele se tornasse um escritor. Vale lembrar que Ngũgĩ wa Thiong'o tem sido um dos autores cotados a ganhar o Prêmio Nobel nos últimos anos.

"Eu ansiava pela chegada dessas noites; parecia-me um glorioso alumbramento que histórias tão bonitas e às vezes assustadoras pudessem sair daquelas bocas. Para mim o melhor eram aquelas histórias nas quais a plateia se juntava para cantar o coro. A melodia era invariavelmente cativante; eu sentia como se fosse transportado a outro mundo de infinita harmonia, até mesmo na tristeza. Isso intensificava minha expectativa do que iria acontecer em seguida." (p. 34)

Os impactos da Segunda Guerra foram sentidos nas colônias, não apenas nas histórias que passaram a circular sobre os "ogros" comandados por Hitler e Mussolini e sobre os heróis, integrantes da comunidade, que estavam lutando pelo Império Britânico, mas pelas dificuldades que afetaram a vida na colônia, como a dificuldade de circulação de alimentos, que gerou períodos de fome e penúria em determinadas áreas. Os primeiros contatos com os homens brancos, algo que marcou a memória do autor e de sua comunidade, ocorreram em 1941, com os prisioneiros de guerra italianos, incumbidos de construir uma estrada de ferro de Nairóbi até o interior. A comunicação entre os italianos e os quenianos da aldeia se dava de forma rudimentar, e chega a ser engraçado as recordações do autor sobre as palavras mais recorrentes que ouviam, da qual deduziam um significado, e que passavam a representar um povo. No caso dos italianos, dada a repetição, passaram a ser apelidados de "Bono" por eles. A violência desses contatos, ainda que de forma sutil, também é descrita pelo autor:

"Houve um tempo em que eu não mais via o Bono Mayai caminhando ou pedindo coisas em nenhuma de nossas vilas. Eles não voltaram. [...] Mas os Bonos deixaram sua marca arquitetônica na igreja que ergueram perto da estrada na borda do Vale Rift em suas horas de descanso, e sua marca sociobiológica nas famílias desfeitas e nos bebês pardos, sem pais, nascidos nas várias aldeias que haviam visitado" (p. 44)

Com o fim da guerra em 1945, o retorno dos soldados, considerados os grandes heróis nesse imaginário infantil, também descreve de que forma a guerra deixa suas marcas, não apenas físicas, mas também psicológicas naqueles que dela participaram. A volta do meio-irmão do autor, que para ele havia lutado nos campos de batalha, mas que exercia na realidade um trabalho burocrático, sinaliza o desejo desse menino por uma educação melhor, que até o momento só esse meio-irmão parecia ter alcançado, e que para ele parecia um sonho impossível. Até o dia em que sua mãe lhe pergunta se quer ir para a escola, e os dois fazem um pacto: ela arcará com as despesas de mensalidade, mas precisa que ele faça sempre o seu melhor, mesmo diante das dificuldades que enfrentará, como não poder levar algo para comer ao meio-dia. É o desejo de aprender dessa criança, em uma escola com costumes diferentes do seu (há uma passagem bonita sobre o estranhamento que o jovem Ngũgĩ sente diante das orações silenciosas na escola - mais uma das marcas da colonização britânica-, que ele levou tempo para entender ser a forma que os colegas e professores rezavam, e que agora lhe era imposta) e a força dessa mãe, sempre preocupada muito mais com o processo de aprendizagem do que com os resultados, que transforma a vida desse menino através da educação.

"Percebo que mesmo as palavras escritas podem transmitir a música que eu amava nas histórias, particularmente a melodia dos coros. E no entanto isso não é uma história; é uma afirmação descritiva. Não traz uma ilustração. É uma imagem em si mesma e, contudo, mais do que uma imagem e uma descrição. É música. Palavras escritas também podem cantar" (p. 67, sobre quando ele aprende a ler)

Os fios que tecem essas memórias são feitos com a ternura e o olhar ainda inocente, cheio de esperança, que costuma caracterizar a infância. Através das memórias por vezes singelas de Ngũgĩ wa Thiong'o passeamos não apenas pelo tempo e por uma região diferente da nossa, mas por uma parte da história pouco conhecida por nós: o olhar de África sobre a colonização. E vemos, aos poucos, como cada uma das muitas histórias vividas e narradas por diversas pessoas contribuiu na formação de um escritor.

***
Ngũgĩ wa Thiong'o nasceu em Kamirithu, Quênia, em 1938, período no qual o país ainda era colônia do Império Britânico. Autor de romances, contos, peças de teatro e ensaios, no fim da década de 1960 renunciou à língua inglesa, ao catolicismo e ao nome de batismo, James, e passou a escrever em gĩkũyũ, língua bantu. Em 1977, foi preso por conta de uma de suas peças. Desde 1992, é professor de literatura comparada na Universidade da Califórnia, Irvine.


Ngũgĩ wa Thiong'o. Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015. Trad. Fábio Bonillo e Elton Mesquita.

 *Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora Globo Livros.

domingo, 27 de setembro de 2015

A pedra de paciência


"A Pedra de Paciência", de Atiq Rahimi

Em plena guerra no Afeganistão, uma jovem mulher cuida de seu marido, um soldado e herói de guerra que está em uma espécie de coma por conta de um ferimento na nuca durante uma luta. A primeira impressão que temos é a diferença de idade entre os dois, seguida pelo estado de abandono da casa, que parece estar em ruínas. Mãe de duas filhas pequenas, essa jovem mulher se vê totalmente desamparada diante do marido em coma, sob os seus cuidados já que toda a família dele fugiu da guerra, deixando-a para mantê-lo vivo, com duas filhas pequenas para alimentar, e correndo todos os riscos de estar em meio a um bombardeio, principalmente se você for mulher.

É a sensação de desamparo que parece mover a personagem a falar o que sente, o que se lembra, e todos os segredos que silenciou durante mais de dez anos de casamento. O filme, nesse sentido, é um monólogo que descreve toda a opressão das mulheres na sociedade afegã (mas não apenas por lá...). Diariamente voltando para a sua antiga casa para cuidar do marido depois de deixar as filhas aos cuidados de uma tia, que mora em um bordel em uma região mais afastada do centro, a jovem esposa se sente cada vez mais compelida a falar. Histórias desde a sua juventude, quando ficou noiva aos 16 anos do marido, as recordações da sua primeira noite com o marido que revelam como a mulher é objetificada, das cobranças da família para engravidar, o sofrimento da primeira gravidez, entre muitas outras histórias começam a ganhar força e a sensação da personagem é de libertação. Em determinado momento, ela diz para o marido em coma: "em todos esses anos, essa é a primeira vez que você me escuta". Uma afirmação que denuncia toda a opressão sofrida pelas mulheres, que silenciam seus desejos e sonhos, mas também seus segredos, para sobreviver em uma sociedade que não lhes permite ser. Afinal, pode realmente o subalterno falar? É essa a grande reflexão do filme, que demonstra que, mesmo que falem, quase sempre as mulheres não são ouvidas.

"A Pedra de Paciência", de Atiq Rahimi

Mas falar é terapêutico e libertador, e isso a protagonista logo descobre. Mesmo que sem ter certeza de que o marido de fato a estivesse escutando. Narrar essas histórias para o marido é uma forma de curar as suas mágoas e, finalmente, se libertar dos segredos que carregou durante toda a vida. Apesar de ser em grande parte um monólogo, o filme não é nem um pouco monótono. Pelo contrário, seguimos o tempo todo envolvidos nas histórias sofridas e nos solidarizando com ela, mas também compartilhando do despertar dessa personagem para a sua própria vida. Um filme intenso e forte, que discute a opressão feminina e que, sem dúvida, merece ser visto.

Se quiser saber mais um pouco do filme, veja o trailer a seguir:

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Cadeia: relatos sobre mulheres



"As mulheres do presídio são muito parecidas entre si - pobres; pretas ou pardas; pouco escolarizadas; dependentes de drogas, cujo crime é uma experiência da economia familiar"

"Cadeia: relatos sobre mulheres" é uma espécie de caderno de campo, no qual a pesquisadora e antropóloga Debora Diniz anotou as histórias que ouviu de mulheres, prisioneiras temidas, durante os seis meses em que visitou a penitenciária feminina do Distrito Federal.

Pesquisadora premiada e reconhecida por sua produção acadêmica, Debora Diniz compartilha com o leitor esse caderno de anotações que foi seu companheiro de reflexões sensíveis, fruto de observação silenciosa diante do que ouviu e viu nesses meses em visita ao presídio. O texto, no entanto, foi escrito de uma forma mais leve se comparado ao hermetismo que muitas vezes habita o texto acadêmico. Com textos curtos, sensíveis, a pesquisadora consegue aproximar o leitor das histórias dessas mulheres, sempre sofridas, que lemos nesse caderno. A leitura flui com facilidade, apesar de tratar de uma temática por vezes dura, e de um espaço marginal em nossa sociedade: um espaço feminino, pobre, negro, presidiário, nordestino. 

É através do olhar de Debora Diniz que podemos atravessar os muros que cercam a penitenciária feminina, carregados por um texto que mistura reportagem e denúncia, e que fala do abandono dessas mulheres, dando voz a suas histórias, histórias que provavelmente nunca ouviríamos sem esse livro; histórias que revelam todo o sistema de exclusão que as envolve, dentro e fora das penitenciárias brasileiras. Apesar de ser um livro que nos convida a pensar no Outro (ou melhor, nas Outras) e que, diante do respeito com que suas histórias foram contadas, tenta nos ensinar a não julgar, eu fico aqui pensando se isso é mesmo possível, principalmente porque uma narrativa, por mais que trate o seu objeto com todo o respeito como vemos no livro, é sempre uma narrativa: o ponto de vista de alguém sobre o outro. Mesmo que o lugar de fala da autora seja marcado no livro e dentro do próprio presídio, ao usar a mesma cor preta da vestimenta dos policiais que fazem a segurança para deixar claro para as detentas que ela não faz parte da turma do "jaleco branco" (as médicas que estão ali para cuidar), a própria seleção de quais histórias seriam contadas já revela muito sobre o olhar de quem escreve. De forma semelhante, nós, leitores, também vamos nos emocionar de maneiras diferentes com cada uma das vidas que ali nos são apresentadas. Mas vale a reflexão sobre o "não julgar" e, mais ainda, vale a leitura desse caderno de vidas quase esquecidas.

***

Debora Diniz é antropóloga e pesquisadora premiada, professora da Faculdade de Direito na Universidade de Brasília, além de militante de causas como a descriminalização do aborto e os direitos reprodutivos das mulheres. É autora de livros e artigos sobre temas diversos, que refletem e impulsionam debates e lutas pela garantia dos direitos humanos no Brasil.



sábado, 22 de agosto de 2015

Lendo a ditadura



Convidei alguns amigos que, assim como eu, ficaram incomodados com alguns pedidos absurdos de intervenção militar e retorno da ditadura em manifestações públicas recentes. Manifestações que só aconteceram porque vivemos em uma democracia (é sempre bom lembrar que manifestações políticas não são permitidas na ditadura, período marcado por prisões sem julgamento, torturas, assassinatos, desaparecimento de pessoas, silenciamento, censura...). 

O projeto Lendo a Ditadura tem por objetivo ler e comentar obras literárias e filmes brasileiros que abordem o período da ditadura militar no Brasil, pois acreditamos que conhecer a nossa história é um passo importante para não repetirmos erros do passado. Todos estão convidados a nos acompanhar nessas leituras. As publicações dos vários blogs e canais que estão participando do projeto, a quem agradeço pelo entusiasmo com que abraçaram a ideia, serão reunidas no blog Lendo a Ditadura. Esperamos que as leituras e as discussões sobre esses livros e filmes sejam proveitosos e que ajudem a relembrar um período de nossa história que não deve ser esquecido e que ainda precisa ser discutido. Boas leituras!



domingo, 16 de agosto de 2015

A distância entre nós



A distância entre nós, que acaba de ganhar uma reedição linda pela Globo Livros, foi o livro que transformou a Thrity Umrigar em uma escritora com mais de 200 mil exemplares vendidos no mundo. Mesmo já conhecendo a escrita dessa autora indiana, não pude deixar de me surpreender com as diversas questões que ele aborda.

O livro tem duas personagens principais, Bhima e Sera, que, por serem mulheres, compartilham as mesmas dores: a opressão de um sistema patriarcal que reprime a liberdade das mulheres e a violência a que estão sujeitas em suas variadas formas. Mas aí a autora ganha muitos pontos: apesar de tudo que as une, existe a diferença de classes que separa as duas personagens e torna diferente as formas de violência que sofrem. Uma perspectiva que não deve ser desconsiderada quando falamos em feminismo.

Bhima trabalha como empregada doméstica na casa de Sera, que é casada com um homem rico, que a mantém em casa, sem poder trabalhar. Há uma cumplicidade entre as duas estabelecida em mais de vinte anos de convivência, pois ao longo desse tempo, apesar da distância social que as separam, estabeleceu-se entre elas uma solidariedade, visto que se ajudaram em diferentes momentos de suas vidas.

A vida confortável de Sera, aparentemente perfeita vista de fora, era na verdade um inferno. Casada com um homem agressivo, Sera era constantemente espancada por ele. Envergonhada por ter esse tipo de tratamento mesmo tendo uma família bem estruturada, formada por intelectuais, Sera se cala diante das agressões. É Bhima quem cuida dela diversas vezes, sempre a encorajando a reagir, a não aceitar esse tratamento. É bem interessante a forma como a Umrigar trata da questão da violência contra a mulher, mostrando que é um problema que atinge as mulheres também da classe alta, desconstruindo o mito de que só as mulheres das camadas mais pobres da população sofrem violência física. A violência psicológica também é abordada, e está presente no casamento de Sera que, mesmo depois da morte do marido, ainda sofre com as lembranças de anos de opressão e sofrimento.

A neta de Bhima, Maya, tem dezessete anos e aparece grávida, sem nunca dizer quem é o pai da criança. Na Índia, uma menina grávida sem  ter se casado está marcada para sempre como uma desonra para a família, pois tudo o que importa é o casamento. A violência desse sistema patriarcal afeta Maya profundamente, que passa a andar triste pelos cantos, deprimida, sem saber o que será de seu futuro. Com a ajuda de Sera, que decide que esta é a melhor opção para não comprometer o futuro da menina, Maya faz um aborto em uma clínica particular por estar acompanhada de Sera. Se estivesse acompanhada de sua avó, Bhima, que não tem dinheiro e não teria condições de arcar com as despesas de um atendimento particular, talvez a saúde de Maya e até mesmo a sua vida fossem comprometidas. E outra vez a Thrity Umrigar ganha pontos por trazer essa discussão à tona, mostrando a importância de discutirmos sobre a saúde da mulher e o direito que todas devem ter de tomar as decisões sobre o seu próprio corpo, independente da classe social a que pertençam.

Enquanto Maya sofre em silêncio pela gravidez seguida de um aborto ainda tão jovem, a filha de Sera comemora a sua primeira gravidez. E nesse momento a crítica social que Thrity Umrigar faz a esses diferentes mundos que coexistem sem quase nunca se tocarem demonstra toda a crueldade das desigualdades sociais.

Além disso, a autora ainda aborda a grande disseminação da AIDS na Índia, mostrando como as mulheres são mais vulneráveis à contaminação, muitas vezes pelos próprios maridos, também por não terem controle e autonomia para se protegerem e cuidarem de sua saúde.

Como já deu para perceber, apesar da narrativa envolvente de Thrity Umrigar, que é uma ótima contadora de histórias, esse é um livro sofrido justamente por sabê-lo real e, mais ainda, por saber que histórias como a de Bhima, Maya e Sera não ocorrem apenas na Índia, mas em nosso próprio país e em vários outros lugares do mundo. São histórias que estão mais próximas de nós do que gostaríamos. São muitos os temas tratados nesse romance e todos envolvem o universo feminino, o que só o engrandece: fala-se de aborto, de estupro, de violência doméstica, de assédio no ambiente de trabalho, na desigualdade ao acesso aos serviços básicos de saúde, de preconceito e também de injustiça.

Mas, mesmo sendo doloroso refletir sobre essas questões, é importante não esquecermos a importância dessa reflexão, principalmente nos dias de hoje. A distância entre nós é um livro que deve ser lido e compartilhado pelas reflexões sobre o feminismo que histórias tão dolorosamente verdadeiras como as das personagens nos possibilitam. É um livro excelente para discussões em um clube do livro, por exemplo. E hoje passou a ser o meu livro preferido da Thrity Umrigar.

UMRIGAR, Thrity. A distância entre nós. São Paulo: Globo Livros, 2015.

Thrity Umrigar nasceu em Mumbai, na Índia, em 1961. Mudou para os Estados Unidos aos 21 anos e trabalhou como jornalista por quase 20 anos. Atualmente dá aulas de literatura e escrita criativa na Case Western Reserve University, em Cleveland, e colabora com jornais como o The Washington Post e The Boston Globe. É autora de A hora da história e A doçura do mundo.

Escolhi e recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Escuta - poemas


Certo
(Eucanaã Ferraz)

Hoje quero te falar de permanecer vivo.

Observa que há árvores velhas e a juventude é 
       longa;
perde ao menos uma hora restaurando os azulejos
       brancos
da tua infância; sobretudo abre as janelas que dão
      para o céu
de Nova Friburgo, terra onde as terras são
principados
de toda a gente e à vista nua divisamos planetas
em varandas alvoroçadas por malmequeres só de
      luz;
hoje quero te falar de junhos nervosos de tantas
      alegrias.

Se tudo te parece frágil é verdade é frágil tudo;
mas venho te dizer que tudo permanecerá vivo
nesta hora em que te digo agora.

FERRAZ, Eucanaã. Escuta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 
Para ler um trecho do livro, clique aqui.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Estação Atocha


O romance é narrado em primeira pessoa por Adam, um jovem poeta estadunidense que ganha uma bolsa de estudos em uma prestigiosa instituição para desenvolver um projeto de pesquisa em Madri sobre poetas espanhóis e seu papel na guerra civil espanhola. Mas Adam é um rapaz que não acredita em si mesmo, que não sabe o que quer da vida, e que está o tempo inteiro refletindo sobre as suas menores ações, buscando analisar o que os outros vão pensar a respeito dele, e se isso está de acordo com o que ele quer que os outros pensem, ainda que isso seja para ele uma grande representação. Nem ele mesmo sabe como conseguiu essa bolsa de estudos, se pouco sabe sobre seu próprio projeto de pesquisa e sabe pouco do idioma.
Usuário de drogas como maconha e haxixe, de medicamentos para depressão e ataques de pânico em altas dosagens, tudo isso associado a um grande consumo de álcool, fazem de Adam um ser caótico, que nada tem de herói. Ele usurpa não apenas versos que lê em outros livros, modificando-os para se apropriar da poesia de outros poetas, como também se apropria de histórias que outras pessoas lhe contam e depois as utiliza em outro contexto, numa tentativa bem desajeitada de criar uma narrativa de si mesmo um pouco mais interessante do que Adam acredita ser.
Durante a leitura, que se arrasta até quase a metade do livro e que depois ganha um pouco mais de ritmo, não consegui me identificar com o protagonista, nem consegui compreender por que dizem que é um romance engraçado. O que Adam quer da vida? Ser poeta? Se tornar um acadêmico? Casar e ter filhos? Ele não sabe e o livro trata basicamente disso, da falta de certeza sobre o que se quer fazer da vida e de como dessa forma Adam passa por ela sem sentir, nem o que escreve, nem o que se passa ao seu redor, sem estabelecer laços afetivos. Diante do atentado terrorista que ocorre em Madri na Estação Atocha que dá nome ao livro (e que é também título do poema "Leaving the Atocha Station" de John Ashbery, poeta muito lido por Adam durante todo o romance e sobre o qual o autor já escreveu ensaios), podemos situar no tempo o romance de Ben Lerner. Porém, Adam não consegue se envolver nem com os protestos políticos que tomam conta das ruas da cidade após a tragédia (o atentado ocorreu em março de 2005, matando mais de 200 pessoas e deixando muitos feridos, a maioria imigrantes), nem muito menos se solidarizar com tantas mortes de inocentes ocorridas a poucos metros do apartamento onde vivia. O egoísmo de Adam só faz com que ele pense nas chances que ele teve de ter morrido/sobrevivido.
O texto, em intenso fluxo de consciência, parece encenar as angústias desse jovem poeta diante da experiência artística, na busca por compreender se ele é mesmo digno de sua arte. Alguns leitores podem achar que este é um romance de formação, que ao final da história alguma transformação ocorreu em Adam. Outros, como ocorreu comigo, podem não ver transformação nenhuma nesse personagem que permanece imerso em si mesmo, nos seus pensamentos e concentrado em sua própria observação do mundo, descrente de seu papel enquanto artista ou cidadão. Duas possibilidades de interpretação sobre a transformação do personagem que deixam para o leitor essa reflexão sobre as intersecções entre arte e realidade na contemporaneidade.

***

"Por muito tempo, eu convivera com a preocupação de ser incapaz de passar por uma profunda experiência artística e me custava acreditar que alguém mais fosse, pelo menos entre os meus conhecidos. Nutria profundo ceticismo a respeito das pessoas que alegavam que um poema ou uma música tinham "mudado a vida delas", especialmente porque, observando-as antes e depois dessa experiência, não conseguia detectar a menor mudança. Embora quisesse dar uma de poeta e apesar de ter ganhado minha bolsa de estudos na Espanha graças a meu suposto talento literário, eu só conseguia apreciar a beleza dos versos quando os encontrava citados em trechos de prosa, nos ensaios que os professores da faculdade me mandavam ler, com as barras substituindo as quebras de linha, de modo que o que me impressionava não era um poema em particular, mas o eco de uma possibilidade poética. O que realmente me interessava na arte era a desconexão entre a minha percepção das obras de arte físicas e as alegações feitas em nome delas. A sensação mais próxima de uma profunda experiência artística que eu tivera talvez tenha sido a vivência dessa desconexão, uma profunda experiência da ausência de profundidade". (p.9)

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LERNER, Ben. Estação Atocha. Rio de Janeiro: Rádio Londres, 2015.

Escolhi e recebi este livro como cortesia da Editora Rádio Londres.

domingo, 26 de julho de 2015

Poesia domingueira

Apocalipse Mínimo

Bem-aventurado quem lê e ouve as palavras desta 
                                                            [alegria
porque o tempo está próximo.
Ouvi por detrás de mim uma pequena voz como de
                                                            [assovio,
e que dizia:
o que vês, e ouves, escreve-o em uma melodia e
                                                         [envia-o.

Eu vi um gafanhoto que dizia
que todas as coisas grandes serão substituídas
por todas as coisas pequenas:
O infinito, pelo grão;
a eternidade, por um triz;
a verdade, pelas palavras;
o amor, pela graça;
o pecado, pelo capricho;
a história, pela gesta;
a certeza, pelo sim
Eu sou o que é, o que era e o que há de vir: a letra e o
som, a colméia e a teia, a brecha e a raiz.

Noemi Jaffe. Todas as coisas pequenas. São Paulo: Hedra, 2005.

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Noemi Jaffe nasceu e vive em São Paulo. Professora de Literatura Brasileira, publicou Folha Explica Macunaíma (Publifolha, 2001) e Ver Palavras, Ler Imagens (Global, 2003, em parceria com Denise Grinspun).

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Flor da neve e o leque secreto

Um idioma criado e usado pelas mulheres e mantido em segredo durante milhares de anos na China foi o que motivou a escritora Lisa See a escrever Flor da neve e o leque secreto. A autora pesquisou sobre essa escrita que só as mulheres chinesas compreendiam e usavam para se comunicar umas com as outras e compartilhar as suas histórias pessoais. Lisa See viajou para a China para pesquisar mais sobre o nu shu, onde pôde conhecer algumas mulheres que aprenderam esse idioma secreto na infância, quando tiveram seus pés atados com uma bandagem para que diminuíssem de tamanho, pois na China pés pequenos eram sinônimos de beleza e também de status social, uma vez que permitiam às mulheres conseguir um melhor casamento. Essa tradição, extremamente violenta e que provocava muito sofrimento às meninas (isso acontecia por volta dos seis anos de idade) e que hoje é proibida, era realizada pelas próprias mães e demais mulheres da família e durava cerca de dois anos, período no qual as meninas ficavam em um quarto, sem sair, trocando as bandagens diariamente e caminhavam com os pés atados sobre os ossos quebrados. Na foto abaixo, os pés de uma mulher chinesa que passou por esse processo (mais fotos aqui). É difícil olhar para essas imagens sem pensar: como uma cultura decide o que é bonito? Como nosso valor enquanto mulheres muda de acordo com esses conceitos?


Ambientado na China no século XIX, o romance é narrado por Lírio, uma viúva de 80 anos que no final da vida decide escrever a história de uma amizade que lhe foi essencial: a que teve com Flor da Neve, uma menina que conheceu quando tinha seis anos, na mesma época em que o processo de bandagem dos pés das duas começou. Algumas meninas encontravam essa amizade especial: a laotong, ou velha igual, aquela que tinha a mesma data de nascimento, a mesma altura, o mesmo signo astrológico e outras coincidências do tipo. Lírio e Flor da Neve estabelecem essa amizade, que é mais forte até mesmo que os laços do matrimônio. O romance narra, portanto, a história dessa amizade, desde a infância até a velhice, abordando os laços de afeto que uniram essas mulheres durante todos os momentos importantes de suas vidas, assim como os seus sofrimentos, e ilustra a condição das mulheres na China do século XIX.
Para as famílias, tudo o que importava era ter um filho, pois na cultura chinesa e patriarcal é o filho homem quem poderá cuidar dos bens da família e dos pais na velhice, assegurando a sua entrada no "céu". O filho homem, ao se casar, traz para a família uma nora que fará todas as tarefas domésticas, em total submissão, como as mulheres são ensinadas desde a infância. Os pais não escondiam a decepção quando nascia uma menina. Alguns chegavam a dizer que era melhor ter tido um cachorro, pois teriam que alimentar e cuidar de suas filhas, juntar dinheiro para o dote, e depois entregá-las a outra família no casamento. Ter uma filha para eles significava financeiramente (e também emocionalmente) perder.
Além de serem consideradas "os galhos inúteis da família", as meninas eram subalimentadas, pois os homens eram sempre os primeiros a comer, e as mulheres viviam das sobras, sem reclamar. Ao completar seis anos, passavam pelo processo de bandagem dos pés que lhes tirava a liberdade de andar e correr como qualquer criança normal durante a infância. A delimitação entre espaço doméstico para as mulheres e espaço público entre os homens torna-se evidente desde os primeiros dias de vida.
Iletradas, analfabetas na escrita dos homens, as mulheres criam então essa escrita secreta, o nu shu, que era passada de geração para geração registrando assim muito da tradição oral em leques, lenços e cartas nas quais as mulheres falavam sobre suas vivências. Alguns homens tomaram conhecimento do nu shu, mas como era algo "de mulheres", essa escrita não foi levada à sério, como se fosse algo menor. Qualquer semelhança com a visão que muitos homens ainda tem da escrita das mulheres nos dias de hoje não é mera coincidência.
Apesar de amigas iguais, ou laotong, Lírio e Flor da Neve tiveram destinos bem diferentes. Enquanto Lírio, por ter os menores pés já vistos na aldeia (também chamados pés de lótus), consegue se casar com o filho de um dos homens mais ricos e importantes da região, Flor da Neve, oriunda de uma família tradicional que perdeu a sua fortuna acaba por se casar com um açougueiro, um homem que foi violento com ela durante toda a vida. A vida de escravidão e violência dessas mulheres, sua angústia constante para ter um filho homem e conseguir mantê-lo com vida para garantir a sua permanência na família é algo terrível. Mas mesmo entre todos os percalços essas mulheres se ajudam como podem, apoiando-se durante todas as etapas da vida, ainda que em ambientes tão distantes. É disso que o livro trata: de uma amizade verdadeira, que se fez possível em muitos momentos através dessa escrita.
Acredita-se que nu shu - a escrita secreta usada pelas mulheres em uma área remota da província de Hunan, na região sudoeste da China - foi desenvolvida há mil anos. Ela parece ser a única linguagem escrita do mundo criada por mulheres exclusivamente para o seu próprio uso.



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Lisa See nasceu em Paris, mas cresceu em Los Angeles, mais especificamente em Chinatown. Atualmente vive em Los Angeles. O romance foi adaptado para o cinema em 2011.

SEE, Lisa. Flor da neve e o leque secreto. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. Tradução: Léa Viveiros de Castro. 335 páginas.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

A linguagem dos pássaros


Pequena novela de estrutura linear, A linguagem dos pássaros narra a história de Miguel e Marisa, duas crianças que se encontram quando tem 11 e 9 anos, respectivamente. Marisa acaba de se mudar com a mãe para a casa ao lado onde Miguel mora com o pai, um professor de filosofia que quer que o filho siga os seus passos. O universo da infância onde esta história de amor se inicia é permeado de histórias, sendo muito ligado à natureza e ao fantástico. Na solidão em que vive com a mãe na casa ao lado, Marisa acaba por encontrar na casa de Miguel, próxima ao mar, um lugar de acolhimento. 

Na adolescência, descobrem-se apaixonados, mas quando Miguel vai para a faculdade as separações constituem um período de grande sofrimento para Marisa, que não consegue nem mesmo escrever cartas para Miguel, como uma forma de protestar pelo abandono. Miguel, no entanto, conta nas cartas que frequentemente escreve para Marisa sobre suas novas vivências. Entre a faculdade e as viagens por diversos lugares do mundo que decide conhecer, há sempre um retorno, e Marisa é sempre aquela que espera a sua volta, certa de que o amor que sente por Miguel é capaz de unir os dois e apaziguar todos os problemas.

Quando retorna dessas muitas viagens que fez na tentativa de se encontrar, de descobrir quem é de verdade, Miguel decide se casar com Marisa. Mas mesmo o amor e o desejo que sentem um pelo outro não são capazes de apaziguar o coração de Miguel, que procura encontrar algo que nem mesmo ele sabe o que é. Miguel encarna o anjo atormentado, a sombra, aquele que busca a linguagem universal, a linguagem dos pássaros, nas diversas línguas que se dedica a aprender. Traduz textos clássicos, escreve poesia, estuda filosofia, mas a vida simples ao lado de Marisa já não lhe basta. Marisa não consegue entender "porque é que ele continuava a procurar... depois de ter encontrado" (p. 40). A obsessão pela unidade, pela alma gêmea, por esse outro eu que completa e ao mesmo tempo é sombra, se aproxima do sobrenatural no final do romance.

Ambientado no presente, mas sem nenhuma marcação de tempo, o livro é rico em referências literárias e artísticas, dialogando com outras artes como a pintura, a música e o cinema e tem como tema a fragilidade do amor e a impossibilidade humana de eternizar a paixão. A linguagem dos pássaros é um livro de grande força narrativa, leitura de um só fôlego, apesar da história aparentemente simples – mas isso é só aparência, pois há outros desdobramentos, como a questão do duplo, que podem ser mais explorados a partir dessa leitura.

"Não disseram mais nada. A escuridão rodeava-os, as sombras, o rumor das vagas, ao longe surgiram as primeiras estrelas, depois o céu ficou coberto delas, começaram a distinguir as constelações, eram as mesmas, eram sempre as mesmas, como eles eram os mesmos, tinham sido tudo desde o primeiro momento, pelo menos desde o primeiro momento em que se tinham encontrado, tudo o que lhes ia acontecer a seguir já existia então, e tudo o que aconteceria depois, e sempre, com eles tudo acontecia ao mesmo tempo. Ela fechou os olhos e deixou-se adormecer, tranquila, plena, no corpo dele, no mundo negro semeado de estrelas e pássaros" (p. 62)

PEREIRA, Ana Teresa. A linguagem dos pássaros. Lisboa: Relógio D'água Editores, 2001.

Ana Teresa Pereira nasceu em 1958 no Funchal, onde vive. Publicou o seu primeiro romance em 1989, intitulado Matar a Imagem, com o qual ganhou o Prêmio Caminho Policial. Publica regularmente desde o seu primeiro romance. Em 2012 conquistou o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), com o romance O Lago.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sejamos otimistas



Já é quase regra: todo ano, em algum sábado de poucas notícias, surge aquele mesmo texto, só que repaginado, com previsões catastróficas sobre o mundo da literatura e dos livros. “Ninguém mais lê” ou “Brasileiro lê pouco”, ou ainda a dramática afirmação “os livros digitais acabarão com os livros em papel”. Um discurso tão negativo que em nada acrescenta ao mundo. Ou será que alguém acha mesmo que ler uma reportagem de jornal fará os leitores imediatamente se darem conta de que precisam pegar um livro na estante como pegamos um remédio indicado pelo médico?

No romance O filho de mil homens, um dos meus livros preferidos, o escritor português Valter Hugo Mãe brinca com esse fato de a literatura ser um remédio:

Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, pois fique sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se como um livro. O Camilo ria-se. Perguntava o que era colesterol, e o velho Alfredo dizia-lhe ser uma coisa de adulto que o esperaria se não lesse livros e ficasse burro. Por causa disso, quando lia, o pequeno Camilo sentia se a tomar conta do corpo, como a limpar-se de coisas abstratas que o poderiam abater muito concretamente. Quando percebeu o jogo, o Camilo disse ao avô que havia de se notar na casa, a quem não lesse livros caía-lhe o teto em cima de podre. O velho Alfredo riu-se muito e respondeu: um bom livro, tem de ser um bom livro. Um bom livro em favor de um corpo sem problemas de colesterol e de uma casa com teto seguro. Parecia uma ideia com muita justiça (2012, p. 69).

Acredito sim que literatura é remédio. Daqueles bem poderosos, capazes de curar tristezas, de mudar (mas também de reiterar) opiniões, de proporcionar reflexões sobre universos distintos dos nossos, de nos fazer pensar. Mas a literatura é um remédio tão específico e de difícil categorização que possui uma forma de indicação própria. Não é algo que se possa obrigar ninguém a gostar verdadeiramente.

A tradição clássica de ensino de literatura nas escolas tem demonstrado isso, pena que nem todo mundo consegue perceber. Não adianta obrigar alguém a ler, e com isso não quero dizer que o ensino de literatura deva deixar de existir, porque ele é indispensável. Com isso quero mostrar que a literatura é um remédio que precisamos desejar, e o papel da escola e também da família deve ser o de despertar o desejo de ler, fomentar o debate (e estimular a tolerância e a capacidade de dialogar, tão necessárias nos dias de hoje), além de alimentar o encanto inicial que move e forma leitores, fazendo com que eles desejem a cada livro lido um desafio maior, uma aventura diferente a ser percorrida. E o exemplo é a melhor forma de fazer isso. Como posso convencer alguém que a leitura é fascinante se eu mesmo não sou capaz de demonstrar a minha paixão pela leitura?

Cada vez que leio um desses textos com previsões apocalípticas, eu me pergunto por onde o autor tem andado que não tem visto a quantidade de jovens que está lendo, participando de clubes de leitura, escrevendo em blogs e gravando vídeos em vlogs, trocando livros para ter a chance de ler mais e driblar o alto preço cobrado nas livrarias, organizando maratonas literárias nas férias, ansiosos por compartilhar a paixão e o encanto de suas descobertas com outros leitores. Para mim é evidente que tem mais gente lendo, basta olhar ao redor. Com certeza ainda não é o suficiente, dada a extensão do nosso país, aos problemas que ainda existem, sem contar o fato de que só recentemente alguns milhões de brasileiros deixaram de viver abaixo da linha da pobreza. Se não havia dinheiro para comer, quem dirá para comprar livros. Tudo isso precisa ser pensado quando lemos sobre essas estatísticas. E não podemos nos esquecer de que leva tempo para transformá-las, mas isso não é algo impossível de acontecer.

Diante de textos tão desanimadores, eu recomendo acessar as novas redes sociais, algumas delas exclusivas para leitores, como o Skoob, que já tem mais de dois milhões de usuários no Brasil, sem falar nas redes internacionais, como o Goodreads, para ficar um pouco mais otimista e também para se animar a ler um livro pois, como disse Daniel Pennac no livro Como um romance, “Não há melhor maneira de abrir o apetite de um leitor do que lhe dar a farejar uma orgia de leitura” (Pennac, 2008, p. 112). É por isso mesmo que precisamos de professores, pais e bibliotecários apaixonados pela leitura para que possam partilhar a sua própria felicidade de ler e com isso despertar nos jovens o desejo de ler tão essencial na formação de um leitor.

Nós, leitores, podemos fazer o que mais amamos, como tenho visto com cada vez mais intensidade nas redes sociais e ao meu redor nesses últimos anos: podemos partilhar a nossa felicidade de ler, falando daqueles livros que nos tocaram a alma pois esse encantamento costuma ser contagioso e pode ajudar muito mais a mudar as estatísticas pessimistas em relação à leitura, e em proporções muito maiores, do que textos apocalípticos e negativos sobre o assunto. 

Entre os leitores deste blog que hoje já se tornaram amigos e que compartilham comigo o mesmo apreço que tenho pela leitura e seu poder transformador, sei que seguem espalhando esse encantamento contagioso e positivo sobre os livros que os encontraram e emocionaram, indicando um livro a um amigo, presenteando alguém com um livro especial, mantendo vivo esse círculo de leitores que desde sempre permitiu a construção de novos laços de amizade e de afeto. É nisso que procuro pensar quando escuto alguém dizer que ninguém mais gosta de ler. Imagino todos os livros que cruzam o país todos os dias nas muitas trocas realizadas no skoob, por exemplo. Ou nos muitos livros que são esquecidos propositalmente em algum banco de ônibus ou em um banco de praça em alguma cidade do país em iniciativas lindas como o bookcrossing. E não deixo de pensar que seria maravilhoso se em um desses dias de tédio, os jornalistas dos textos apocalípticos decidissem escrever não esse tipo de texto negativo, nem muito menos uma resenha de um lançamento do mês sobre o qual são obrigados a escrever, mas sobre um livro que de fato marcou a sua vida. Talvez assim eles conseguissem se lembrar da felicidade de ler; talvez assim eles conseguissem ver que tem muito mais gente lendo. Acredite:




sábado, 20 de junho de 2015

A amiga genial

A amiga genial é o primeiro volume da tetralogia criada por Elena Ferrante, narra a infância e a adolescência de duas personagens, as protagonistas da história: Elena e Lila. A partir do prólogo, tomamos consciência do mote do romance: Lila desapareceu, aos sessenta e seis anos, sem deixar vestígios; Elena, na tentativa de não deixar que ela desapareça por completo, decide escrever a sua história, que é a história de ambas e da amizade que se estabeleceu entre as duas desde a infância. A escrita é, portanto, uma forma de eternizar o que a vida não foi capaz de manter, uma forma de garantir a permanência das pessoas e das lembranças construídas a partir de suas vivências.

Mas a infância dessas personagens nada tem de comum. Lila é uma menina levada e destemida, por vezes cruel, em quem Elena se espelha. A relação entre as duas é uma mistura de competição, inveja e admiração. “Nosso mundo era assim, cheio de palavras que matam” (p. 25) é o que nos conta Elena. E a força das palavras de Lila era o que enfeitiçava Elena. A violência está presente na infância das duas como algo inerente à vida ou ao próprio ambiente em que vivem. São meninas pobres, em um bairro em que, para sobreviver, é preciso aprender a reagir.

 “Não tenho saudade de nossa infância cheia de violência” (p.25).

Apesar de franzina, Lila se destaca das demais pela inteligência, sendo a primeira da turma quase sempre, uma autodidata que lia escondido de todos, e por ser uma pessoa sempre em busca de um desafio. Algo que fica evidente na trama é como a escola por vezes também é um ambiente hostil e propício a humilhações quando a competição é estimulada pelos professores e diretores. Quando as meninas se destacam mais que os meninos na escola, são vítimas de mais violência para impedir qualquer desestruturação da ordem patriarcal que claramente governa a sociedade italiana descrita no romance. Muitas delas são impedidas de continuar os estudos muito mais por serem mulheres do que pela condição social da família, como podemos observar no diálogo entre Rino, irmão de Lila, e seu pai:

“Se você me pagar, eu me encarrego dos estudos dela”, dizia Rino.
“Estudar: Pra quê? Por acaso eu estudei?”
“Não”
“Então por que sua irmã, que é mulher, precisa estudar?”

A escrita honesta de Ferrante, ao mesmo tempo em que nos choca pela violência que se apresenta assim sem nenhum comedimento, também nos encanta à medida que a história se desenvolve e essas personagens incríveis e complexas vão se apresentando. Quando nos damos conta estamos absolutamente envolvidos nessa narrativa que mostra um pouco do cenário italiano pós-guerra, onde as mulheres sofrem bastante pela submissão que a sociedade lhes impõem, silenciando suas vontades para assumirem o papel de esposas e mães, mas onde também há meninas como Lila e Elena, que sonham com uma vida de glamour, em que possam escrever, estudar, se apaixonar de verdade.

A trajetória dessas duas amigas desde a infância até a adolescência é contada através dos olhos de Elena, a amiga genial, a única que consegue continuar estudando. As duas tem uma relação de encantamento com os livros, mas Lila parece silenciar essa relação com o tempo para atingir outros objetivos. A eterna admiração que Elena sente por Lila, que mesmo sem estudar continua sendo brilhante, é um sentimento complexo e talvez o que mais encante na escrita de Ferrante: ela consegue retratar de forma honesta personagens humanas, verdadeiras, com todas as suas contradições. Mais importante ainda é que é a história de uma amizade entre mulheres, destacando todas as transformações que enfrentam em suas vidas, todos os obstáculos que tem que enfrentar (a violência inclusive), a partir da perspectiva feminina.

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que, indo contra a maré atual entre os escritores, quer permanecer fora dos holofotes: nada se sabe sobre sua vida pessoal, ela se recusa a divulgar fotografias e diz acreditar que os livros, uma vez escritos, não precisam de seus autores. Se eles têm algo a dizer, mais cedo ou mais tarde encontrarão os leitores. 

Enquanto leitora, só tenho a dizer que estou feliz que este livro tenha me encontrado e que a obra dessa escritora finalmente comece a chegar ao público brasileiro – que certamente vai ficar como estou agora: ansiosa pelos volumes seguintes dessa série Napolitana que promete muitas emoções.

FERRANTE, Elena. A amiga genial. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015. 336 páginas. Tradução: Maurício Santana Dias.

Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Hanói



Romance sobre deslocamentos, Hanói narra a história de David, um rapaz de 32 anos apaixonado por música, que trabalha em uma loja de materiais de construção em Chicago, Estados Unidos. David acaba de ser diagnosticado com um câncer agressivo, em estado avançado, para o qual não há mais tratamento. Ele só tem mais três ou quatro meses de vida e, abalado com a notícia da morte próxima, começa a repensar algumas questões de sua vida. Sozinho, sem parentes próximos, sem namorada, David decide se desfazer de tudo, assim como na lenda dos elefantes que se afastam de tudo para morrerem sozinhos. Ele pede demissão do trabalho e começa a doar seus pertences antes de escolher um lugar para onde viajará sozinho, o seu último destino.
Quando te dizem que é o último gole, David pensou, você para, aguça os sentidos e sente o gosto da bebida pela primeira vez (LISBOA, 2013, p. 13)
David é um exemplo dos deslocamentos contemporâneos, que parecem ser o tema central do romance de Adriana Lisboa. Filho de pai brasileiro que imigrou para os Estados Unidos em busca de melhores condições de vida, e de uma mãe mexicana, David cresceu nos Estados Unidos em contato com três culturas e idiomas diferentes. Apesar disso, a língua que aprendeu a falar tão bem, o inglês, é a língua que o pai nunca conseguiu aprender e que a sua mãe falava com bastante sotaque, ou seja, uma barreira de comunicação com o filho e com o novo lugar que habitam, onde sempre serão estrangeiros, um lugar ao qual não pertencem. Sem família, David é esse homem desenraizado, que reconhece na música a possibilidade universal de comunicação, independente das fronteiras linguísticas ou geográficas. É por meio da música que David se expressa e se comunica com o mundo, mas essa comunicação não se dá com sua namorada, Lisa, que despreza sua condição de músico amador, sua falta de ambição diante da vida. Quando Lisa joga o trompete de David pela janela, evidencia-se que essa comunicação entre eles não se estabelece. 

Quando conhece Alex, uma jovem de vinte e dois anos que trabalha no mercado vietnamita do bairro, David encontra a possibilidade de ter ao seu lado algumas horas de alegria enquanto a doença progressivamente se agrava. Sim, Hanói também é uma história de amor. Alex (nome oriental para um rosto cinquenta por cento) também é resultado de deslocamentos: sua avó, Linh, engravidou de um soldado estadunidense, um soldado inimigo, durante a Guerra do Vietnã. Por conta disso, tanto ela quanto a sua filha sofreram muito preconceito por “trair” seu próprio povo. Do soldado, elas nunca mais tiveram notícias. Anos depois, Linh parte para os Estados Unidos com a filha de dezessete anos, Huong, em busca de trabalho e um recomeço. A amizade com Trung, um vietnamita que também migrou para os Estados Unidos, onde abriu um mercado de produtos vietnamitas, permitiu que eles formassem uma comunidade, pois compartilhavam a mesma língua e cultura, assim como a experiência da Guerra do Vietnã, que foi completamente distinta da experiência que os estadunidenses tiveram dessa mesma guerra, considerada a Guerra Americana. A língua, ao mesmo tempo em que os unia, também os segregava:
Trung só falava com Alex em vietnamita na presença da mãe e da avó dela. Uma espécie de decência. Com Alex, o que era mais confortável para Alex. Mas, quando as gerações mais velhas estavam presentes, prioridade às gerações mais velhas (LISBOA, 2013, p. 36)
Deslocados de seu país de origem, de sua cultura e de seus antepassados, essas personagens compartilham a sensação de não pertencimento:
Quanto a Huong e Lihn, que conheciam bem essa história (a partir da fase náutica), suas pequenas almas também não pareciam estar ali, presentes, quando seus pés pisavam as calçadas das novas cidades pelas quais passavam. Mesmo quando aprendiam palavras do novo idioma e decifravam os costumes esquisitos de seu novo país.
Suas almas não estavam grudadas no corpo, Alex pensava. Pairavam em algum outro lugar, como se fossem pipas que elas empinavam e que flutuavam lá no alto, onde havia mais ar puro e menos todas as outras coisas (LISBOA, 2013, pp. 46-47)
Ao representar mulheres imigrantes, com vivências sofridas em meio à violência da guerra, a autora foge dos estereótipos comuns que representam o imigrante apenas como o homem em busca de melhores condições de vida. A perspectiva apresentada no romance de Lisboa também é feminina. Além disso, é possível observar a presença do trabalho dessas mulheres imigrantes nos Estados Unidos, e todo o preconceito que sofriam, além da invisibilidade que as cercavam, excluídas por não partilharem o conhecimento do novo idioma e também por sua posição social.

Alex, da terceira geração dessa família, cinquenta por cento vietnamita, cinquenta por cento estadunidense, afasta-se de seus pais, assim como ocorre com David, principalmente por conta do idioma e do fato de não compartilhar com a mãe e a avó as lembranças de uma época e de um lugar no passado para o qual não é possível regressar.

Além de falar dos deslocamentos tão comuns no mundo contemporâneo, Hanói nos faz repensar essas fronteiras identitárias, a barreira linguística e o sentimento de pertencimento (ou não pertencimento) que é igualmente comum ao mundo moderno. O mais interessante do romance, contudo, é a forma que a autora apresenta personagens “sem raízes”, com histórias complexas, para falar de uma essência que os aproxima, de uma solidão que os aflige, independente do idioma ou de sua localização geográfica; algo que os torna mais humanos, aproximando-os do leitor: a consciência da proximidade da morte, da finitude da vida. Um livro sensível, delicado, aparentemente simples, mas que trata de sentimentos tão profundos que nós também somos transportados por esses lugares, mas não sem regressar dessa leitura de coração partido.

Para ler o primeiro capítulo de Hanói, clique aqui.

LISBOA,Adriana. Hanói. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.