domingo, 22 de fevereiro de 2015

Reze pelas mulheres roubadas


“A melhor coisa que você pode fazer no México é ser uma menina feia” – é assim que a narradora protagonista de Reze pelas mulheres roubadas (Rocco, 2015, 240 páginas), Ladydi Garcia Martinez, começa a narrar sua vida e a história de tantas mulheres em Guerrero, no México. Uma terra onde as mães lamentam o nascimento de uma filha já antevendo o seu triste destino. Para proteger suas filhas, elas dizem para todos que tiveram um menino. Mas nessa aldeia todas as mulheres tinham meninos, até as crianças terem onze anos, quando já não era mais possível esconder que eram meninas. Então as mães fazem de tudo para que as suas filhas fiquem feias, para que pareçam sujas, na tentativa de torná-las invisíveis aos olhos dos homens, para não despertar a atenção e o desejo dos traficantes de drogas que dominam completamente a região, escravizando e exterminando mulheres. Porém, nem sempre essas mães conseguem esconder a beleza das filhas, que desde cedo tem a sua infância e os seus sonhos roubados. Por isso, próximo a cada casa há um buraco no chão cavado por essas mulheres, um esconderijo para as filhas caso os carros dos traficantes se aproximassem, na tentativa última de que a terra as protegesse. Mas “o estado de Guerrero se orgulha de ser o povo mais zangado e mais cruel do mundo” e nenhuma menina roubada jamais retornou. A única exceção foi Paula, amiga de Ladydi e a moça mais bonita da aldeia, que volta um ano depois cheia de cicatrizes no corpo e na alma.

A cidade de Guerrero, apesar de regida pelas leis opressoras do patriarcado, é, portanto, um território feminino,  pois são as mulheres que cuidam de suas famílias e estão em maioria no local. Não há homens na aldeia, pois quando adultos eles partem para a cidade grande em busca de trabalho ou arriscam suas vidas na tentativa de cruzar as fronteiras e alcançar o sonho americano. Muitos morrem nessa travessia; outros conseguem chegar aos Estados Unidos e, trabalhando de forma ilegal, conseguem mandar algum dinheiro para a família. Mas isso geralmente só dura um curto período de tempo, pois logo constituem uma nova família por lá e deixam para trás as mulheres e as filhas, como ocorreu com o pai de Ladydi, que tinha esse nome não em homenagem à beleza da princesa Diana, mas porque sua mãe compartilhava do mesmo destino de mulher traída que a princesa. 

Nesse território feminino, as mulheres são cúmplices, e compartilham as dores de seus destinos. Lutam diariamente pela sobrevivência nesse universo de solidão e miséria, mas sabem que seus caminhos foram traçados no seu nascimento. Não há um horizonte de possibilidade para essas mulheres. Elas são assassinadas por serem mulheres. Uma menina que nasce com lábio leporino, por exemplo, é celebrada por não atender aos padrões de beleza que atraem os homens, tendo por isso alguma chance de não ser alvo dos traficantes e de sobreviver. Uma das cenas bonitas do livro é quando as mulheres e as meninas se reúnem no salão de beleza, que se chama A Ilusão, e as mulheres pintam as unhas, arrumam os cabelos e se permitem sonhar por alguns instantes, mas desfazem tudo antes de sair. Afinal, diferente dos outros salões de beleza, o salão precisa deixar as mulheres mais feias para tentar protegê-las.

Através do olhar inocente de Ladydi, encontramos um retrato da vida dessas mulheres e de toda a violência que tem dizimado a população feminina na região. Não apenas a questão dos imigrantes ilegais e do narcotráfico são abordadas, mas também os problemas diversos de que essas mulheres são alvo, como o risco de contaminação da Aids pelos próprios maridos, o alcoolismo, a dificuldade de atendimento médico na região e de professores nas escolas, o que só destaca a ausência da participação do Estado no local, o que só favorece os criminosos, entre outros assuntos.

Apesar de ser uma obra de ficção, este romance não deixa de ser um retrato e uma denúncia da realidade cruel de violência contra as mulheres não apenas no México, mas em diversos outros países e também em outros continentes. A autora, Jennifer Clement, pesquisou durante anos e entrevistou mulheres na região norte do México que, pela proximidade da fronteira associado ao contexto de omissão de Estado e consequente impunidade dos criminosos, constitui um dos lugares onde esse tipo de violência ocorre com mais intensidade e se repete há anos. Estudos como o de Rita Laura Segato (2005) sobre os femicídios em Ciudad Juarez, outra cidade no norte do México que poderia muito bem ser a Guerrero do romance, mostram que a arte de fato imita a vida. Esses estudos são também uma denúncia de que reduzir tamanha barbárie a “crimes de motivo sexual” pode ser um pouco equivocado uma vez que o comportamento omisso do Estado, a ausência de provas nas investigações, a falta de informações sobre os crimes e de investigações mais consistentes resultam em um círculo de repetição sem fim desse tipo de crime, mostrando que o problema é bem maior e mais complexo.

Por meio de uma narrativa muito fluida e envolvente, contada através do olhar inocente de uma criança, Jennifer Clement coloca em evidência um assunto que precisa ter a atenção que merece. É sempre uma leitura válida a de um livro que nos faz pensar sobre um tema importante, que abre nossos olhos para acontecimentos que não são noticiados na TV, e que nos faz perceber essas formas de violência silenciosas que continuam afetando a vida de inúmeras mulheres e que não podem continuar. Uma leitura mais do que recomendada, obrigatória.

CLEMENT, Jennifer. Reze pelas mulheres roubadas. São Paulo: Rocco, 2015.

Para ler um trecho do romance, clique aqui.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Tudo são histórias de amor



“Tu, leitor, vem cá, caminha comigo na berma desta estrada” – é a primeira frase de um dos contos deste livro e resume um pouco a sensação que temos ao navegar por essas páginas: somos guiados pelas palavras precisas e poéticas de Dulce Maria Cardoso. Palavras que formam um conjunto de histórias que retratam a alma humana, o que há de obscuro, cruel e complexo em seus sentimentos. São histórias de amor, mas não aquelas triviais e com final feliz. São aquelas histórias que doem, inquietam, incomodam. A respiração fica suspensa por alguns instantes depois de cada um dos 12 contos aqui presentes, e precisamos de um tempo para recuperar o fôlego e absorver o muito que estava ali, em poucas páginas.

O primeiro conto, um dos meus preferidos e o que tem um dos títulos mais bonitos – Este azul que nos cerca – fala sobre a inveja, a cobiça, e o desejo de ter o que o outro tem. Quando se consegue isso, o que sempre provoca muito sofrimento, já não é a mesma coisa, já não tem mais o mesmo sentido. É um conto que consegue ser ao mesmo tempo doce e amargo.

Em A biblioteca, os leitores certamente vão se identificar com o texto, pois o amor pelos livros está bem ali, em cada palavra. “Os livros salvaram-me”, diz Dulce Maria Cardoso, e são livros assim que nos salvam também.
"Estes livros, mais do que testemunhas, são meus cúmplices. Sabem tudo de mim. E eu sei tão pouco deles. Ainda que lhes conheça segredos escondidos e erros cândidos. Ainda que lhes saiba da ambição e lhes confirme o fracasso. Sei pouco deles. Os livros conhecem-nos, mas não é da sua natureza deixarem-se conhecer completamente. O mistério destes pequenos deuses."
Em Não esquecerás, vemos que a literatura é também uma forma de nos lembrarmos de tantas vidas que se vão de forma trágica, por pura negligência; é também o que nos incita a questionar os acontecimentos do mundo, a olhar criticamente para os fatos que nos cercam.

O conto Iguais narra a história de dois irmãos, gêmeos idênticos, que queriam ser iguais em tudo, mas que logo descobrem que são nossas vivências que nos tornam únicos.
“Identificar os acasos que nos trouxeram ao que somos só nos torna mais frágeis. Fazemo-lo na esperança de percebermos como nos aconteceu tornarmo-nos o que somos. Em vão.”
Em Coisas que acarinho e me morrem entre os dedos somos convidados a refletir sobre os nossos medos, principalmente o medo de perder, que quase sempre nos impede de tentar.
"Não quero amar o que não pode, para sempre, aceitar-me de regresso"
Desaparecida, ou a Justiça é um conto que se inspira livremente em fatos reais (no caso, o desaparecimento de uma criança, cujo corpo nunca foi encontrado, e a condenação de sua mãe pelo homicídio), o que mostra o olhar atento e sensível da autora diante da realidade que é, sim, objeto da literatura e serve para nos fazer refletir sobre os julgamentos que fazemos em nome do nosso desejo de “justiça”. Há muita violência e crueldade aqui e tem um final que nos assombra.

Os anjos por dentro conta a história de uma família, do amor de uma mãe pelos seus dois filhos e da violência do amor, que determina certas escolhas.

O conto Pânico consegue passar uma angústia imensa em poucas páginas; Humal nos deixa abismados com a crueldade humana. É um conto que certamente não é fácil de esquecer.

Retrato de um jovem poeta fala de decrepitude, de solidão, da lembrança e do esquecimento, e dos afetos aos quais nos agarramos, a todo custo, para sobreviver. É um soco no peito, como quase todos os contos desse livro.

Autobiografia é um dos meus favoritos e parte da ideia de que matamos - com o tempo, com as palavras, com as decisões - muito do que somos e talvez um dia tenhamos que lidar com todos os outros “nós” que deixamos morrer junto com os nossos sonhos.

É difícil escrever sobre contos sem dizer mais do que devemos dizer. Mas os contos de Dulce Maria Cardoso encantam mesmo aqueles que dizem não gostar muito de contos, como eu costumava dizer. Já entrou para a minha lista de melhores leituras de 2015. Recomendo e aviso: são histórias que fazem o coração doer.


 CARDOSO, Dulce Maria. Tudo são histórias de amor. Lisboa: Tinta da China, 2014. 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

As preces são imutáveis


"Procura-se alguém que saiba turco" -  é o que diz o anúncio no jornal encontrado pela jovem turca Pelin, que atualmente mora em uma metrópole europeia. Com problemas familiares e precisando de dinheiro, ela vai ao encontro da senhora Rosella Galante, uma senhora idosa que há sessenta anos aprendeu turco quando, fugindo do Holocausto, procurou abrigo em Istambul. É em turco, portanto, que estão as suas lembranças, aquelas que Rosella quer a todo custo não esquecer.

O que era um simples trabalho de conversar em turco por duas horas a cada semana acaba se transformando em uma grande amizade. Os arroubos juvenis de Pelin encontram pouso na sabedoria de uma vida bem vivida como a de Rosella. Rosella que em sua solidão acaba por ter pela jovem um carinho que se tem por uma filha. De forma singela, a língua é descrita aqui como o elo capaz de unir as pessoas, acima do tempo e das circunstâncias. A amizade bonita que surge entre as duas mulheres, com vivências e idades tão diferentes, é a prova disso.

As estórias de Rosella, que vivenciou o horror da guerra e a perseguição aos judeus, aproximam o leitor de uma parte da história que provocou grande destruição e sofrimento. Rosella fala de paixões, da dor de se separar daqueles que amamos, dos recomeços que são os reencontros e das lembranças mais ternas que silenciamos, mas nunca esquecemos. Fazendo o possível para não esquecer a língua turca que nutre as suas lembranças, ao contar as suas histórias Rosella consegue que a jovem Pelin, que não gosta nada de falar sobre seus sentimentos, comece a se abrir e a narrar também as suas dores. Sofrendo ainda por ter sido abandonada pela mãe quando criança, no momento da separação de seus pais, é através das histórias de Rosella sobre sua vida e sua própria filha que ela encontra um consolo, ou uma nova perspectiva diante do que ocorreu: "Antes de julgar alguém, deve-se ouvir suas preces. Somente assim se pode conhecer alguém verdadeiramente." (p. 78)

Uma narrativa simples e delicada, escrita de forma singela, que consegue nos aproximar dessas duas personagens tão humanas nos sentimentos que compartilham conosco. O que chamou minha atenção na livraria foi justamente o título, que achei lindo e que resume muito dessa história: "mesmo que os deuses sejam diferentes, as preces são imutáveis".  

O romance foi publicado no Brasil pela Sá Editora e é o primeiro livro de literatura turca moderna que ganha versão direta do turco para o português, com tradução de Marco Syrayama de Pinto. O escritor Tuna Kiremitçi nasceu na Turquia em 1973. Reconhecido em seu país como uma das grandes vozes da nova literatura turca, já publicou quatro romances e dois livros de poesia.

KIREMITÇI, Tuna. As preces são imutáveis. Barueri: Sá Editora, 2010.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

A máquina de Joseph Walser


O segundo livro da tetralogia O Reino, de Gonçalo M. Tavares, narra a história de Joseph Walser, um homem introvertido, calado e apático. Joseph é casado com Margha e trabalha em uma fábrica operando uma máquina perigosa, pois ao mesmo tempo que lhe fornece o trabalho que o sustenta, também pode, com um único descuido, tirar a sua vida. Apesar do baixo salário que recebe, Joseph se reúne aos sábados com outros colegas de trabalho para jogar dados fazendo apostas. Tendo uma vida bastante regrada, onde cada ação precisa ser executada de forma controlada, o jogo de dados é um dos poucos momentos em que sente ter controle sobre seu destino, já que só há dois caminhos possíveis ao jogar os dados: a sorte ou o azar.

Assim como ocorre no primeiro livro da tetralogia, a história se passa em um tempo de guerra. Por não entender a guerra, Joseph decide nela não interferir: não tece comentários a respeito como se nada estivesse acontecendo. Se não posso ver e se não me afeta, não existe - é esse o pensamento de Joseph. Uma atitude de negação e apatia que pode representar aqui a atitude humana diante não apenas da guerra, mas da violência e da pobreza que afetam tantas pessoas em nossa sociedade. Essa indiferença é a marca de Joseph Walser, que certo dia vê sua esposa saindo da casa do encarregado da fábrica onde trabalha. O que era uma suspeita se confirma quando o próprio Klober, encarregado da fábrica, conta a Joseph que é amante de sua esposa. Ainda assim, Joseph continua indiferente a Margha, como se nada estivesse acontecendo, sem esboçar nenhuma reação.

A guerra parece movimentar toda a vida das pessoas na cidade, alguns até estão formando grupos secretos contra a guerra, mas Joseph Walser não é convidado a participar. As pessoas não confiam nele, que segue normalmente com a sua vida e sua rotina, mantendo a apatia diante da vida. Joseph tem uma coleção, que parece ser a única coisa com a qual ele se importa. Uma coleção secreta, onde arquiva objetos únicos, encontrados em condições únicas, que fazem dele, portanto, um ser único. É um exemplo bem vivo da valorização do material em detrimento de sentimentos mais nobres e pelas pessoas que o cercam.

Um dia, por um deslize, acontece um acidente na fábrica e Joseph tem o dedo indicador da mão direita amputado. Esse fato interferirá em vários aspectos de sua vida: ele não poderá mais operar a máquina com a qual trabalhava, passando a ter uma função administrativa e sem riscos. Seu salário será diminuído (já não há mais o extra pela função de risco que exercia). Toda a sua rotina muda, já não encontra mais os mesmos colegas de trabalho. No jogo de dados, porém, sua sorte muda e a ausência do dedo parece o favorecer.

Joseph Walser é um homem preparado para não amar ninguém, um homem que "desde cedo ficara evidente que não desejava ser protagonista, mas apenas uma testemunha" (p. 123) de tudo que o cerca. Ele passa a se encontrar com a viúva de um de seus colegas de jogo, morto em uma armadilha sobre a qual Walser foi informado e de forma covarde nada fez. Ainda me incomoda muito a forma como as mulheres são representadas na história, o que considero o ponto fraco do livro, além de algo perigoso, uma vez que reforça estereótipos extremamente negativos. 

A reflexão sempre muito filosófica presente na obra de Gonçalo Tavares, que escreve com uma concisão impressionante, em que a frase mais simples nos faz pensar sobre muitas coisas, é sem dúvida um dos pontos fortes do romance. A máquina de Joseph Walser, que ao mesmo tempo em que lhe garante o sustento pode a qualquer momento o destruir, nos faz pensar sobre todo o aparato tecnológico de que hoje dispomos e que pode também a qualquer momento ser usado contra a própria humanidade. É o maquinário que é usado nas guerras para provocar o mal. Há também a reflexão sobre o próprio comportamento de Walser, que tenta se isentar da vida e das decisões necessárias, o que enfatiza a ideia de que não podemos passar pela vida sem fazer escolhas, sem nos posicionarmos. No fim, como ocorre com Walser, que tem a decisão sobre viver ou morrer em um simples jogo de dados proposto pelo encarregado, chega o momento em que a decisão é inevitável ou que alguém decidirá por nós, mas nem sempre da forma mais favorável.

TAVARES, Gonçalo M. A máquina de Joseph Walser. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A vida privada das árvores



A vida privada das árvores é um romance breve e intenso que se desenvolve a partir de uma espera. Julián, um professor de literatura e aspirante a escritor, está esperando a sua esposa, Verônica, voltar de uma aula de desenho. Enquanto espera ao lado de sua enteada, Daniela, que já é para ele como uma filha, ele conta histórias para fazê-la dormir, e é daí que vem o título do romance, das histórias em que árvores são personagens que ele conta para Daniela.

Em uma narrativa breve, porém envolvente, Julián transforma essa espera em diferentes histórias: as que ele conta para Daniela e as que ele começa a desenvolver enquanto Verônica não chega. São várias histórias possíveis, como um acidente, uma traição, e também as histórias que ele viveu no passado, contando como foi que ele e Verônica se conheceram, como era sua vida antes dela chegar e, por fim, imaginando um futuro sem ela, onde ele passa a ser o responsável por Daniela.

É bem interessante a forma como o autor escreve, pois parece que o leitor é convidado a observar como é o seu fazer literário, como surgem aquelas narrativas, tão simples, tão breves  e cotidianas, mas dotadas de muita paixão.

A mesma impressão que tive ao ler Bonsai, primeiro romance desse escritor chileno, ressurgiu ao ler seu segundo romance: fiquei com a impressão de que o mais importante aqui não é o enredo em si, mas a construção dessa narrativa, que também faz parte dessa história. E acho que é esse o ponto interessante do texto, todo o tempo em que acompanhamos o autor por essas diferentes possibilidades do texto literário.


ZAMBRA, Alejandro. A vida privada das árvores. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

The autobiography of my mother



The autobiography of my mother (A autobiografia de minha mãe) é um romance narrado em primeira pessoa e ambientado na Dominica. Carrega, em cada página, a escrita cheia de lirismo e força da Jamaica kincaid, que explora em vários dos seus romances o relacionamento mãe-filha. Diferente do romance Lucy, aqui sabemos desde a primeira linha que quem narra a história é uma menina cuja mãe morreu durante o parto e esse acontecimento, como uma sombra, paira sobre a personagem até o fim, como um destino.
"My mother died at the moment I was born, and so for my whole life there was nothing standing between myself and eternity; at my back was always a bleak, black wind."
Assim como Lucy, é um romance de formação que descreve a vida dolorosa e sofrida da narradora desde a infância até a velhice. Tudo é narrado pelos olhos de Xuela Claudette Richardson, nome que só nos é informado no final e que representa o peso da herança colonial. É como se Xuela simbolicamente representasse o sofrimento de todos os colonizados. E o que temos é a sua própria autobiografia, uma vez que sua vida e tudo o que se passa ao seu redor, é a sua própria vida.
"The word “love” was spoken with such frequency that it became a clue to my seven-year-old heart and my seven-year-old mind that this thing did not exist"
A infância sem amor, a escola do colonizador que buscava acima de tudo o apagamento de uma cultura e de uma história, as humilhações, a descoberta da sexualidade sem nenhum sentimento, e a própria decisão da personagem de não ter os filhos que gerou demonstra uma visão da história sob a perspectiva de uma mulher caribenha. Há também a ambígua relação com o pai, que para Xuela era um desconhecido e só com o tempo passa a ser compreendido por sua ganância e subjugamento a tudo o que dizia respeito ao colonizador. A madrasta e a irmã, que não gostavam de Xuela, são exemplos da condição subalterna das mulheres, que ainda viviam para o casamento e que eram subjugadas por não serem homens, o que fica evidente na forma como a madrasta trata o irmão e a irmã, favorecendo sempre o homem, que lhe asseguraria o futuro como herdeiro da família.  Todos esses acontecimentos retratam a vida de repleta de perdas e de solidão da protagonista. Seu ressentimento, que pode ser sentido não apenas nas descrições muito sensoriais usadas no texto, desenvolve em Xuela um amor-próprio que sentimos não ser verdadeiro, não nos convence inteiramente, mas que percebemos ser a forma que ela encontra para sobreviver.
"She died. I married her husband, but this is not to say that I took her place."
The autobiography of my mother é um livro sobre perda, solidão, falta de amor, relações familiares e muitos outros assuntos. É um romance que aborda a condição das mulheres no Caribe e nesses momentos percebemos ainda mais a força dessa personagem, que é muito complexa. Kincaid retrata muito bem a perspectiva do colonizado, a partir do ponto de vista feminino, o que sem dúvida traz para o texto algo que o enriquece e que desperta muitas reflexões. Uma leitura que vale muito a pena.
"She was fierce; she had been born feeling that her brightright was already spoken for. She thought I was the person who might take it away from her. I could not. I was not a man." 
KINCAID, Jamaica. The autobiography of my mother. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1996. 228 p.

"The present is always perfect. No matter how happy I had been in the past I do not long for it. The present is always the moment for which I live. The future I never long for, it will come or it will not; one day it will not. But it does not loom up before me, I am never in a state of anticipation. The future is not even like the black space above the sky, with an intermittent spark of light; it is more like a room with no ceiling or floor or walls, it is the present that gives it such a shape, it is the present that encloses it. The past is a room full of baggage and rubbish and sometimes things that are of use, but if they are of real use, I have kept them."