sábado, 7 de fevereiro de 2015

A máquina de Joseph Walser


O segundo livro da tetralogia O Reino, de Gonçalo M. Tavares, narra a história de Joseph Walser, um homem introvertido, calado e apático. Joseph é casado com Margha e trabalha em uma fábrica operando uma máquina perigosa, pois ao mesmo tempo que lhe fornece o trabalho que o sustenta, também pode, com um único descuido, tirar a sua vida. Apesar do baixo salário que recebe, Joseph se reúne aos sábados com outros colegas de trabalho para jogar dados fazendo apostas. Tendo uma vida bastante regrada, onde cada ação precisa ser executada de forma controlada, o jogo de dados é um dos poucos momentos em que sente ter controle sobre seu destino, já que só há dois caminhos possíveis ao jogar os dados: a sorte ou o azar.

Assim como ocorre no primeiro livro da tetralogia, a história se passa em um tempo de guerra. Por não entender a guerra, Joseph decide nela não interferir: não tece comentários a respeito como se nada estivesse acontecendo. Se não posso ver e se não me afeta, não existe - é esse o pensamento de Joseph. Uma atitude de negação e apatia que pode representar aqui a atitude humana diante não apenas da guerra, mas da violência e da pobreza que afetam tantas pessoas em nossa sociedade. Essa indiferença é a marca de Joseph Walser, que certo dia vê sua esposa saindo da casa do encarregado da fábrica onde trabalha. O que era uma suspeita se confirma quando o próprio Klober, encarregado da fábrica, conta a Joseph que é amante de sua esposa. Ainda assim, Joseph continua indiferente a Margha, como se nada estivesse acontecendo, sem esboçar nenhuma reação.

A guerra parece movimentar toda a vida das pessoas na cidade, alguns até estão formando grupos secretos contra a guerra, mas Joseph Walser não é convidado a participar. As pessoas não confiam nele, que segue normalmente com a sua vida e sua rotina, mantendo a apatia diante da vida. Joseph tem uma coleção, que parece ser a única coisa com a qual ele se importa. Uma coleção secreta, onde arquiva objetos únicos, encontrados em condições únicas, que fazem dele, portanto, um ser único. É um exemplo bem vivo da valorização do material em detrimento de sentimentos mais nobres e pelas pessoas que o cercam.

Um dia, por um deslize, acontece um acidente na fábrica e Joseph tem o dedo indicador da mão direita amputado. Esse fato interferirá em vários aspectos de sua vida: ele não poderá mais operar a máquina com a qual trabalhava, passando a ter uma função administrativa e sem riscos. Seu salário será diminuído (já não há mais o extra pela função de risco que exercia). Toda a sua rotina muda, já não encontra mais os mesmos colegas de trabalho. No jogo de dados, porém, sua sorte muda e a ausência do dedo parece o favorecer.

Joseph Walser é um homem preparado para não amar ninguém, um homem que "desde cedo ficara evidente que não desejava ser protagonista, mas apenas uma testemunha" (p. 123) de tudo que o cerca. Ele passa a se encontrar com a viúva de um de seus colegas de jogo, morto em uma armadilha sobre a qual Walser foi informado e de forma covarde nada fez. Ainda me incomoda muito a forma como as mulheres são representadas na história, o que considero o ponto fraco do livro, além de algo perigoso, uma vez que reforça estereótipos extremamente negativos. 

A reflexão sempre muito filosófica presente na obra de Gonçalo Tavares, que escreve com uma concisão impressionante, em que a frase mais simples nos faz pensar sobre muitas coisas, é sem dúvida um dos pontos fortes do romance. A máquina de Joseph Walser, que ao mesmo tempo em que lhe garante o sustento pode a qualquer momento o destruir, nos faz pensar sobre todo o aparato tecnológico de que hoje dispomos e que pode também a qualquer momento ser usado contra a própria humanidade. É o maquinário que é usado nas guerras para provocar o mal. Há também a reflexão sobre o próprio comportamento de Walser, que tenta se isentar da vida e das decisões necessárias, o que enfatiza a ideia de que não podemos passar pela vida sem fazer escolhas, sem nos posicionarmos. No fim, como ocorre com Walser, que tem a decisão sobre viver ou morrer em um simples jogo de dados proposto pelo encarregado, chega o momento em que a decisão é inevitável ou que alguém decidirá por nós, mas nem sempre da forma mais favorável.

TAVARES, Gonçalo M. A máquina de Joseph Walser. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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