terça-feira, 31 de março de 2015

Minotauro


Alguns livros (hoje em dia cada vez mais raros) nos conquistam desde a primeira página. "Minotauro" é, sem dúvida, um deles. Pela própria forma como a narrativa é construída, o leitor, principalmente o mais curioso, não consegue deixar de lado uma história assim tão intrigante. Logo nos damos conta de que nós é que estamos presos no labirinto criado por Tammuz. Por conta do suspense estabelecido ao longo do texto, que só desvendamos de fato no final, Minotauro é um daqueles livros destinados a viver na prateleira de livros favoritos dos leitores mais exigentes. O livro, que foi um grande sucesso mundo afora nos anos oitenta, finalmente chega aos leitores brasileiros pela editora Rádio Londres com tradução direta do Hebraico de Nancy Rozenchan.

O enredo conta a história de um homem, um agente secreto, que no dia do seu aniversário de quarenta e um anos está sozinho em um quarto de hotel, bem longe de casa. Sabemos que o relacionamento dele com a sua esposa e seus três filhos é muito frio e distante. É um homem introvertido, misterioso, que vive em solidão.
Quando o agente secreto entra em um ônibus de uma cidade que a princípio não sabemos muito bem qual é, apenas que é bem distante de sua cidade de origem, ele finalmente encontra o objeto do seu amor: mas ela tem dezessete anos e ele, quarenta e um. Impossível não pensar na Lolita, do Nabokov:
"A jovem da esquerda tinha cabelo cuja cor era uma espécie de cobre, cobre escuro, brilhando com um reflexo dourado. O cabelo era liso e preso na nuca com uma fita de veludo preto, atada num laço cruzado. A fita, assim como os cabelos, destacava-se pela limpeza fresca, o tipo de limpeza imaculada que é encontrada nas coisas que ainda não foram tocadas pela mão que manuseia" (p.13)

Obcecado por Téa, ele começa a segui-la silenciosamente e o "diálogo" entre eles passa a acontecer através de cartas anônimas que ele começa a enviar para ela. Téa não sabe quem escreve essas cartas, nem para onde poderia enviar uma resposta, então começa a escrever cartas para ele, guardando-as em uma caixa destinada a esse remetente anônimo, que um dia ela espera conhecer. Quem seria esse homem misterioso, que já sabe tanto sobre ela, e que lhe escreve cartas tão belas de amor? Apesar do discurso "amoroso" das cartas, é difícil não pensar que mulher receberia estranhas cartas anônimas por tanto tempo de um homem que claramente está obcecado por ela e não sentiria medo, e não contaria para ninguém. Mas Téa, logo nas primeiras páginas, é descrita pelo narrador como alguém fácil de manipular, que faria tudo o que ele quisesse: "capaz de devoção total, entusiasta" (p. 15). Téa, portanto, não tem voz nessa história, assim como as demais mulheres que aparecem ao longo do narrativa. Todas aceitam passivamente e com total subserviência o que os homens lhes ordenam. Isso é algo que sem dúvida merece ser pensado durante a leitura de Minotauro.

Há uma tensão que perdura por toda a narrativa, e paira no ar a sensação de que algo trágico vai acontecer. Podemos sentir isso na angústia de Téa, que acaba por se envolver cada vez mais com essas cartas, que, feito fios, passam a prendê-la pouco a pouco no mistério desse homem que ela nunca viu, do qual ela pouco ou nada sabe, mas que a imaginação lhe permite idealizar. As fantasias românticas de Téa casam-se perfeitamente com o delírio obsessivo do agente secreto que manipula seus sentimentos durante anos.
"Você jamais terá a oportunidade de me formular perguntas, mas a minha voz chegará a você por meio de cartas, e eu sei que as lerá" (p.15, carta do agente secreto para Téa)
Temos assim uma troca de cartas, mas em alguns momentos lemos em sequência algumas cartas escritas pelo agente secreto, o que nos deixa imaginando as possíveis respostas de Téa, e, em outros momentos, lemos em sequência algumas cartas de Téa, o que também nos faz imaginar quais seriam as respostas de nosso agente secreto. Mas, enovelados que estamos nos fios dessa narrativa tão bem construída por Tammuz, lembramos que as cartas de Téa até então não haviam sido enviadas para ele, estavam todas em uma caixa. O diálogo foi todo através da imaginação. Da nossa imaginação e da imaginação desses personagens. 

Depois passa a haver de fato uma troca de cartas, que tornam-se menos ou mais frequentes em certos períodos. Assim como Téa, que espera pelas cartas de seu interlocutor anônimo, nós também ficamos aflitos por saber mais sobre esse personagem misterioso, obsessivo e romântico. 

Mais dois personagens são fundamentais para essa narrativa que tem quatro vozes importantes: G.R. e Nikos.
G.R., um rapaz também apaixonado por Téa, que faz de tudo para conquistá-la, surge como um terceiro elemento. Passa a estudar muito e a tirar boas notas na faculdade só para impressioná-la. Cultivou por muito tempo uma paixão platônica por Téa, até conseguir dela se aproximar. Mas qual homem poderia competir com o homem idealizado que, após anos de correspondências anônimas, mora no coração fantasioso de Téa? Ou será que um relacionamento real conseguiria destituir esse homem misterioso do mito que ele se tornou?

A quarta voz é Nikos, que deixa o coração de Téa em dúvida sobre sua verdadeira identidade. As semelhanças entre ele e o que ela imagina ser o agente secreto são muitas e Téa já está exausta de conviver há anos com esse suspense. Será que ele é o agente secreto com quem ela se corresponde há anos?

Por fim, o emaranhado de fios se desembaraça, não sem antes passear pela vida desses personagens, desde a infância. Esse passeio pelas lembranças do passado de cada um acaba por elucidar muitas de suas ações no presente em que se passa parte da história. Principalmente quando o passado do agente secreto é desvendado, a questão política ajuda a contextualizar no tempo e no espaço parte importante do enredo.

Minotauro é um livro inquietante, que nos faz refletir sobre a obsessão e a necessidade humana de amar e ser amado. É um livro triste por falar de uma solidão irreparável, sem salvação. Das marcas que relações familiares destituídas de amor podem deixar em nós a tal ponto de sermos capazes de reproduzi-las. Nem mesmo o amor de Téa pode salvar o minotauro do destino que ele acredita ser seu. Do mito do Minotauro na mitologia grega fica a lição: não há como enganar os deuses.


***
Benjamin Tammuz nasceu na Rússia, em 1919, e emigrou para a Palestina com a família aos cinco anos de idade. Estudou Direito e Economia na Universidade de Tel Aviv e mais tarde frequentou a Sorbonne, em Paris, onde cursou História da Arte. Foi escultor, pintor, romancista, jornalista e crítico literário. Por muitos anos foi editor do suplemento literário do jornal Ha'aretz. Durante quatro anos foi adido cultural da Embaixada de Israel em Londres. Seus romances e contos foram traduzidos para vários idiomas e receberam diversos prêmios literários, consagrando Tammuz como um dos mais ilustres expoentes da literatura hebraica contemporânea. O romance Minotauro foi eleito o livro do ano na Inglaterra quando foi publicado em 1989, tendo recebido elogios de grandes escritores. Benjamin Tammuz faleceu em 1989 em Tel Aviv. 

TAMMUZ, Benjamin. Minotauro. Rio de Janeiro: Rádio Londres, 2015. Tradução: Nancy Rozenchan.

Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora Rádio Londres.

sábado, 21 de março de 2015

Sangue no olho


Narrado em primeira pessoa, Sangue no olho conta a história de Lucina, uma escritora chilena que vive em Nova York, onde faz doutorado. Prestes a se mudar para o apartamento que seu namorado, Ignacio, acaba de comprar, surge a enfermidade, que pode deixá-la cega para sempre. Mesmo com todo acompanhamento médico, há sangue em seu olho e nem o oftalmologista sabe se ela perderá a visão para sempre ou se é algo temporário. Enquanto aguarda o período necessário para a cirurgia que confirmará de certa forma o seu destino, Lucina ou Lina, precisa aprender a estar cega, a conhecer o mundo ao seu redor de uma nova forma. Nesse sentido, a narrativa se desenvolve de dentro dessa cegueira.
Além do medo que está sentindo diante dessa nova realidade, Lina passa a se sentir insegura em seu relacionamento com Ignacio, julgando que será para ele um peso, alguém de quem a partir de agora dependerá muito mais. Em crise, ela vai para o Chile por uns dias reencontrar sua família, uma família típica de classe média, que também tem seus problemas. O pai é um pouco ausente, a mãe é uma médica que trabalha demais e se sente culpada, sufocando seus filhos com tanto cuidado. Lina diz para a mãe: “tua ajuda me invalida”, em uma das partes mais bonitas do romance, quando a mãe percebe que não pode fazer tudo pela filha, quando se dá conta de que ela precisa, por conta própria, aprender novamente o mundo. Um dos irmãos abandona tudo isso e se afasta, para poder cuidar de sua própria vida. O outro vive de uma maneira irresponsável, apesar de estar mais presente. Voltar para a casa sem a visão é o que permite que Lina possa compreender melhor aqueles que ela ama.
Em sua nova condição, Lucina ouve audiobooks o tempo inteiro, na tentativa de suprir a falta que a leitura e as palavras lhe fazem. Por conta dos procedimentos médicos, suspendeu temporariamente a sua pesquisa de doutoramento, apesar de manter contato frequente com sua orientadora, aquela que conhecendo bem seu lado de escritora e amante das palavras, está sempre incentivando a aluna e amiga a não deixar de contar histórias e a brincar com as palavras simplesmente por não poder vê-las. A memória então passa a ser um elemento chave na vida de Lucina, que consegue guiar seu namorado enquanto ele dirige pelas ruas do Chile baseando-se unicamente na memória afetiva de sua cidade, onde os barulhos, cheiros e sensações ajudam a mostrar o caminho.
É particularmente interessante o fato de a pesquisa de Lucina, ou Lina, ser sobre a doença na literatura latino-americana. Nessa autoficção, a personagem diz: “me dei conta de que eu era como a antropóloga que se apaixona por seu objeto de estudo. Um amor desmedido, arriscado, porque o objeto tinha se apropriado de mim, se voltado contra mim” (p. 161). O teor autobiográfico do livro reside não só no mesmo nome da autora e personagem, na vivência entre essas duas cidades (Santiago e Nova York) que a autora compartilha com a personagem e na mesma pesquisa que desenvolvem, mas na experiência de um problema de visão que a autora teve (já curado), não tão grave quanto o da personagem do romance. Esse devaneio entre realidade e ficção, que se misturam e alguns pontos, mas que não se igualam, é o que torna o romance extremamente interessante.
Nesse ensaio sobre a cegueira, pois é uma história sobre a doença, a perda de um sentido possibilita a redescoberta de outros, proporciona uma compreensão maior daqueles que nos cercam e acaba por ser um ensaio sobre o amor, pois nessa travessia pela escuridão a protagonista parece questionar-se o tempo inteiro sobre os limites do amor, tanto de seus familiares quanto do seu namorado. Até que ponto você vai por mim, para me guiar na escuridão? Em Sangue no olho, é o homem que tem que apresentar uma prova de amor, rompendo com a ideia de que só as mulheres se sacrificam nas relações afetivas. O que me incomodou um pouco no romance foi justamente essa ideia de que amar um cego seria um sacrifício, assim como a vitimização da personagem em alguns momentos diante da enfermidade. Apesar dessa impressão (que é totalmente pessoal), posso dizer que é uma escrita intensa, por vezes angustiante, por vezes poética, que conquista a atenção do leitor até a última página.
Vale a pena destacar a beleza da edição da Cosac Naify que, de forma sutil, conseguiu captar plasticamente o mote do romance com as páginas que começam na cor branca e vão escurecendo à medida que a história (e a cegueira) da personagem se desenvolvem, aproximando o leitor da angústia da personagem ao perder a visão.

Lina Meruane nasceu em Santiago do Chile, em 1970. Ao lado de Alejandro Zambra e Alejandra Costamagna, e é hoje um dos principais nomes da literatura contemporânea de seu país. Atualmente é professora de cultura latino-americana na Universidade de Nova York. 
MERUANE, Lina. Sangue no olho. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Tradução de Josely Vianna Baptista. 192 páginas.
Para ler uma entrevista com a Lina Meruane, clique aqui.                                              

quinta-feira, 12 de março de 2015

The Opposite of Loneliness



The Opposite of Loneliness (O oposto de solidão) reúne ensaios e contos de Marina Keegan, uma jovem de 22 anos (cuja foto ilustra a capa do livro), estudante de literatura na Universidade de Yale que queria se tornar escritora. Marina era uma aluna apaixonada não só pela literatura, mas pela Universidade em que estudava. Durante a faculdade, foi pesquisadora assistente do crítico literário Harold Bloom e fez estágio na revista The Paris Review. Ela teve um dos seus ensaios publicados no New York Times e já vislumbrava uma oportunidade de trabalho na revista New Yorker depois da formatura.
Marina tinha muitos sonhos, uma grande paixão pela escrita e pela vida, e o entusiasmo compartilhado por muitos jovens no dia de sua formatura, quando suas carreiras se iniciam. Mas cinco dias depois de se graduar com todas as honras de uma aluna brilhante, houve um terrível acidente de carro e Marina faleceu aos 22 anos de idade, quando voltava para casa para passar uns dias com os pais. A comoção por conta da trágica e precoce morte de Marina foi imensa e o seu ensaio que dá título ao livro, The Opposite of Loneliness, foi lido por mais de um milhão de pessoas. 
Nesse ensaio, que é uma reflexão sobre o tempo passado na universidade e o início da carreira dos alunos, quando muitos deles estão cheios de dúvidas sobre a vida, Marina afirmava: "Somos tão jovens. Temos vinte e dois anos. Temos muito tempo". Marina declara também o seu encantamento pela Universidade de Yale, por todas as experiências e intenso aprendizado que pode ter durante seus anos de estudo. Em Yale, Marina diz ter vivido exatamente o contrário de solidão, sentimento que não consegue resumir em uma palavra. O fato é que Marina tem sido aclamada como um dos ícones de sua geração, uma geração que anda mesmo à procura de heróis.
Os ensaios e contos que compõem este livro foram reunidos pelos pais e amigos de Marina e organizados por sua professora, mentora e amiga, Anne Fadiman. Fadiman deixa claro na introdução que Marina não gostaria de ser lembrada por ter morrido cedo demais, mas sim por ser boa naquilo que se propôs ao fazer quando disse: "Decidi que vou ser escritora. Uma escritora de verdade. Com toda minha vida".
Há quem diga que, não fosse a trágica morte de Marina e o apelo que as tragédias tem entre o público, principalmente o estadunidense, este livro nunca teria sido publicado. Eu prefiro pensar que não temos o poder de fazer tais julgamentos e previsões tão pessimistas e cruéis, até porque, diante da trajetória acadêmica de Marina e da quantidade de textos que ela já tinha escrito, muito mais do que foi possível reunir em um único volume, segundo informações da organizadora, é bem provável que ela de fato conseguisse ser a escritora que queria ser.
Acredito que The opposite of loneliness terá maior apelo entre os jovens da mesma faixa etária da autora, pela maior identificação que a história de Marina permite suscitar. Não podemos negar também que o sucesso do livro nos Estados Unidos está muito ligado à tradição universitária dos estadunidenses, que valorizam muito o período em que os jovens estão nas universidades, algo que nem sempre é muito valorizado em nosso país. Mas leitores de outras faixas etárias também podem encontrar nessas páginas um lembrete, espécie de carpe diem moderno, que talvez faça com que se lembrem dos próprios sonhos que nutriam nessa idade, aquela idade em que acreditamos que temos todo o tempo do mundo.

"What we have to remember is that we can still do anything. We can change our minds. We can start over. Get a post-bac or try writing for the fisrt time. The notion that it's too late to do anything is comical. It's hilarious. We're graduating from College. We're so young. We can't, we MUST not lose this sense of possibility because in the end, it's all we have".

KEEGAN, Marina. The opposite of loneliness. New York: Scribner, 2014. 240 páginas.

terça-feira, 10 de março de 2015

Rádio Londres - Parceria




A Rádio Londres é uma editora independente que acaba de estrear no mercado literário brasileiro em grande estilo, com um catálogo de alta qualidade, que já pelos primeiros livros tem se destacado com a publicação de vários títulos de ficção internacional que nunca foram traduzidos para o português. Já estou namorando os livros do catálogo desde que soube da nova editora em janeiro de 2015 e é por isso que estou feliz em anunciar que o blog Pipa não sabe voar foi selecionado como blog parceiro da Rádio Londres Editora. Com isso, vocês, leitores do blog, poderão acompanhar os principais lançamentos da Rádio Londres Editora com resenhas que publicaremos aqui no blog após a leitura dos livros. São muitos títulos interessantes e alguns deles já estão disponíveis nas melhores livrarias. Para conhecer melhor o catálogo da editora, clique aqui.
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domingo, 8 de março de 2015

O desgoverno dos sonhos

o desgoverno dos sonhos
(um poema de Valter Hugo Mãe)

já não te aguardo,
adio-me

sobre o veludo da tua
morte o atrito do
corpo é a dolente barca onde
o dia quase não passa, pelo mar dentro
o céu a estalar

se à morte tudo sobeja,
sobejo de sentir o outono

o livro oblitera as
palavras e silencia-me.
deitar-me-ei, o sol a pesar o
meu corpo e tu, todo o
tamanho do mundo, calado, morto,
vasta extensão
que aprenderei a percorrer

existe uma arritmia tênue
no coração de quem perdeu
o amor de outrem, um coração tênue que se sobrepõe ao que
já se tem

eu deixei a luz em
dias como este, conheço o
olhar sem imagens dentro,
sei do frio quando lento
se caminha a rua, quando nada
difere do que a alma
sente, esse fim do
amor na respiração que recua

e sei o porquê desta ansiedade ao
virar a página
ainda que ninguém seja passível de se
esconder entre as
folhas de um livro

a morte não me
assusta, hei-de voar-lhe
no céu da boca
assim que se prepare para
me engolir

e resgato os pássaros
enquanto as árvores
chilreiam e defino o vento pela
sua mecânica

critico-os, de que adianta ser pássaro
quando não se tira os olhos do chão

por isso persigo o pôr do sol,
janelas abertas, e
vacilo

lágrima, pavio de
água que acabo de
acender, arde, onde
por fim parto

já tu me esperas,
abrevias-me


MÃE, Valter Hugo. Contabilidade. Portugal: Editora Objectiva, 2010. pp. 268-270

quinta-feira, 5 de março de 2015

Três vezes ao amanhecer

O novo romance de Alessandro Baricco chega às livrarias na primeira quinzena de março em uma edição bonita da Alfaguara e com tradução de Joana Angélica d'Avila Melo. Três vezes ao amanhecer (2015, 112 páginas) é um livro imaginário que aparece em Mr. Gwyn, lançado no Brasil em 2014. Depois de escrever Mr. Gwyn, Baricco quis também dar vida a Três vezes ao amanhecer. Apesar de derivar de um livro anterior, ele pode ser lido de forma independente, mas acredito que os leitores que ainda não tiveram a chance de ler Mr. Gwyn ficarão bem mais curiosos agora.

Na nota de abertura do livro, Baricco diz:
"Estas páginas contam uma história verossímil que, no entanto, jamais poderia acontecer na realidade. De fato, contam sobre dois personagens que se encontram por três vezes, mas cada vez é única, e a primeira, e a última. Eles podem fazer isso porque habitam um Tempo anômalo que inutilmente procuraríamos na experiência cotidiana. São as histórias que o proporcionam, de vez em quando, e este é um dos privilégios delas." Por essa nota, percebemos muito da relação com o romance anterior, em que Jasper Gwyn nos diz que "não somos personagens, somos histórias". E essas três histórias únicas, que falam de um encontro que é o primeiro e também o último, me fizeram pensar em Kundera em A insustentável leveza do ser (einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca).

Nas três histórias que constituem o livro, dois personagens se encontram antes do amanhecer (o que me fez pensar em Após o anoitecer, do Murakami) e esse encontro acaba por proporcionar uma reflexão sobre suas vidas, sobre a possibilidade de recomeçar. A primeira história narra o encontro de um homem de 42 anos e uma mulher embriagada no saguão de um hotel; a segunda é o encontro de uma jovem de dezesseis anos e o porteiro idoso de um hotel que tenta convencê-la a fazer escolhas melhores e deixar o namorado violento e fugir; a terceira e última história também começa em um quarto de hotel onde uma policial de meia-idade prestes a se aposentar decide levar um garoto de treze anos, único sobrevivente de um incêndio, para o lugar que considera o mais bonito do mundo: ao lado do homem que ama e que não vê há anos.

Com essas três histórias breves, mais uma vez Baricco nos mostra que o tempo inteiro explora e se diverte com as possibilidades da literatura, assim como Jasper Gwyn. Ao explorar o tema da mudança e da possibilidade de recomeços à luz do alvorecer, essas três histórias se entrelaçam com maestria numa metáfora bonita sobre as possibilidades e os recomeços de nossas próprias vidas. 

BARICCO, Alessandro. Três vezes ao amanhecer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. Trad. Joana Angélica d'Avila Melo. 112 páginas.

Para ler o primeiro capítulo de Três vezes ao amanhecer, clique aqui.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Até o fim

Nem sempre o enredo mais mirabolante é o que faz uma boa história. As histórias simples são, muitas vezes, aquelas que melhor permitem mostrar o talento e a sensibilidade do escritor, principalmente na caracterização dos personagens. Em Até o fim (Record, 2014, 308 p.), Anna Quindlen demonstra com maestria que consegue mesmo criar personagens tão verdadeiros e humanos que é impossível não nos afeiçoarmos a eles durante a leitura. Com um enredo simples, esse romance conta simplesmente a história de uma família aparentemente feliz. Casada com um oftalmologista bem sucedido, Mary Beth é uma paisagista, dona de casa e mãe em tempo integral. Sua filha mais velha, Ruby, está no último ano do colegial, se preparando para ir para a faculdade. É uma menina com personalidade forte, que quer ser escritora e já faz sucesso na revista literária da escola. Os dois filhos, Max e Alex, são irmãos gêmeos e tem personalidades opostas: enquanto um faz o estilo popular e é a estrela do time de futebol da escola, o outro é tímido e gosta de computadores e histórias em quadrinhos. 

Por trás do enredo aparentemente simples, Quindlen pouco a pouco nos mostra que as relações familiares e os sentimentos que delas derivam são um elemento rico para a literatura. Cada um dos membros dessa família é descrito pela protagonista, Mary Beth, que consegue ser imparcial e justa com cada um deles. Somos apresentados não apenas aos seus defeitos e problemas, mas às suas qualidades, ao que os torna especiais e únicos naquela família. Mary Beth é uma mãe de meia idade que está em crise: sentindo-se esmagada pela rotina exaustiva de uma mãe de família, apesar de amar os filhos e se preocupar com eles a todo o momento, ela também está se sentindo sozinha vendo o quanto eles ficam mais distantes dela à medida que crescem. Os problemas de comunicação que surgem entre pais e filhos nesse distanciamento entre as gerações é sentido não apenas por Mary Beth, mas também por seu marido, Glen. Os dois são pais amorosos e companheiros, tem um casamento considerado feliz, mas também já conseguem sentir os desgastes que o tempo naturalmente provoca em um casamento de muitos anos. As coisas não são mais ditas, simplesmente porque não precisam mais ser. O que por um lado demonstra uma grande cumplicidade, também pode mostrar uma acomodação e uma dificuldade de comunicação.

Na primeira parte do romance, somos apresentados a essa família, e a sensação é que estamos mesmo ali, dentro da casa, enquanto Mary Beth está na cozinha preparando o café e os gêmeos estão descendo as escadas correndo para ir para a escola. Quando nos damos conta, já estamos ali torcendo por cada um deles, vendo onde cada um está errando, mas sem deixar de ver o que cada um tem de bom. Torcemos por Max, que está deprimido e se sentindo "um estranho no ninho", para que os encontros com o psicólogo o façam compreender que tudo vai ficar bem e que, à sua maneira, ele também é especial. Torcemos por Ruby, para que ela consiga mesmo afastar um ex-namorado que não aceita o fim do namoro e não a deixa em paz. Torcemos por Alex, para que ele se aproxime do irmão e consiga se comunicar melhor com as pessoas que ama. Exatamente como se nós também fôssemos um membro da família. Mas, assim como Mary Beth, desde as primeiras páginas do romance, pressentimos que algo está errado, que algo vai acontecer. E acontece.

Acompanhamos então como essa família lidará com o evento trágico que a atinge, como farão para se reerguer. E nós sofremos junto com eles e por eles. É uma história triste, que nos emociona em diversos momentos, pois aborda questões que todos temos em comum. Sei que em algum ponto da história alguém vai se reconhecer em um dos personagens ou reconhecer algum familiar em um deles. Imaginar o que sentem é o desafio que a Anna Quindlen lança ao leitor. Mas em nenhum momento ela diz que será fácil.

Nesse sentido, Até o fim é um romance que explora muito bem os silêncios que podem passar despercebidos no cotidiano de uma família normal, assim como o que não é dito e os problemas que decorrem da falta de comunicação entre os membros de uma família. É um romance que nos faz pensar na família, no amor que sentimos por ela, mesmo com todas as imperfeições. Cada uma delas é o que nos faz ser o que somos. 

QUINDLEN, Anna. Até o fim. Rio de Janeiro: Record, 2014. 308 páginas. Tradução: Joana Faro