domingo, 26 de julho de 2015

Poesia domingueira

Apocalipse Mínimo

Bem-aventurado quem lê e ouve as palavras desta 
                                                            [alegria
porque o tempo está próximo.
Ouvi por detrás de mim uma pequena voz como de
                                                            [assovio,
e que dizia:
o que vês, e ouves, escreve-o em uma melodia e
                                                         [envia-o.

Eu vi um gafanhoto que dizia
que todas as coisas grandes serão substituídas
por todas as coisas pequenas:
O infinito, pelo grão;
a eternidade, por um triz;
a verdade, pelas palavras;
o amor, pela graça;
o pecado, pelo capricho;
a história, pela gesta;
a certeza, pelo sim
Eu sou o que é, o que era e o que há de vir: a letra e o
som, a colméia e a teia, a brecha e a raiz.

Noemi Jaffe. Todas as coisas pequenas. São Paulo: Hedra, 2005.

***
Noemi Jaffe nasceu e vive em São Paulo. Professora de Literatura Brasileira, publicou Folha Explica Macunaíma (Publifolha, 2001) e Ver Palavras, Ler Imagens (Global, 2003, em parceria com Denise Grinspun).

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Flor da neve e o leque secreto

Um idioma criado e usado pelas mulheres e mantido em segredo durante milhares de anos na China foi o que motivou a escritora Lisa See a escrever Flor da neve e o leque secreto. A autora pesquisou sobre essa escrita que só as mulheres chinesas compreendiam e usavam para se comunicar umas com as outras e compartilhar as suas histórias pessoais. Lisa See viajou para a China para pesquisar mais sobre o nu shu, onde pôde conhecer algumas mulheres que aprenderam esse idioma secreto na infância, quando tiveram seus pés atados com uma bandagem para que diminuíssem de tamanho, pois na China pés pequenos eram sinônimos de beleza e também de status social, uma vez que permitiam às mulheres conseguir um melhor casamento. Essa tradição, extremamente violenta e que provocava muito sofrimento às meninas (isso acontecia por volta dos seis anos de idade) e que hoje é proibida, era realizada pelas próprias mães e demais mulheres da família e durava cerca de dois anos, período no qual as meninas ficavam em um quarto, sem sair, trocando as bandagens diariamente e caminhavam com os pés atados sobre os ossos quebrados. Na foto abaixo, os pés de uma mulher chinesa que passou por esse processo (mais fotos aqui). É difícil olhar para essas imagens sem pensar: como uma cultura decide o que é bonito? Como nosso valor enquanto mulheres muda de acordo com esses conceitos?


Ambientado na China no século XIX, o romance é narrado por Lírio, uma viúva de 80 anos que no final da vida decide escrever a história de uma amizade que lhe foi essencial: a que teve com Flor da Neve, uma menina que conheceu quando tinha seis anos, na mesma época em que o processo de bandagem dos pés das duas começou. Algumas meninas encontravam essa amizade especial: a laotong, ou velha igual, aquela que tinha a mesma data de nascimento, a mesma altura, o mesmo signo astrológico e outras coincidências do tipo. Lírio e Flor da Neve estabelecem essa amizade, que é mais forte até mesmo que os laços do matrimônio. O romance narra, portanto, a história dessa amizade, desde a infância até a velhice, abordando os laços de afeto que uniram essas mulheres durante todos os momentos importantes de suas vidas, assim como os seus sofrimentos, e ilustra a condição das mulheres na China do século XIX.
Para as famílias, tudo o que importava era ter um filho, pois na cultura chinesa e patriarcal é o filho homem quem poderá cuidar dos bens da família e dos pais na velhice, assegurando a sua entrada no "céu". O filho homem, ao se casar, traz para a família uma nora que fará todas as tarefas domésticas, em total submissão, como as mulheres são ensinadas desde a infância. Os pais não escondiam a decepção quando nascia uma menina. Alguns chegavam a dizer que era melhor ter tido um cachorro, pois teriam que alimentar e cuidar de suas filhas, juntar dinheiro para o dote, e depois entregá-las a outra família no casamento. Ter uma filha para eles significava financeiramente (e também emocionalmente) perder.
Além de serem consideradas "os galhos inúteis da família", as meninas eram subalimentadas, pois os homens eram sempre os primeiros a comer, e as mulheres viviam das sobras, sem reclamar. Ao completar seis anos, passavam pelo processo de bandagem dos pés que lhes tirava a liberdade de andar e correr como qualquer criança normal durante a infância. A delimitação entre espaço doméstico para as mulheres e espaço público entre os homens torna-se evidente desde os primeiros dias de vida.
Iletradas, analfabetas na escrita dos homens, as mulheres criam então essa escrita secreta, o nu shu, que era passada de geração para geração registrando assim muito da tradição oral em leques, lenços e cartas nas quais as mulheres falavam sobre suas vivências. Alguns homens tomaram conhecimento do nu shu, mas como era algo "de mulheres", essa escrita não foi levada à sério, como se fosse algo menor. Qualquer semelhança com a visão que muitos homens ainda tem da escrita das mulheres nos dias de hoje não é mera coincidência.
Apesar de amigas iguais, ou laotong, Lírio e Flor da Neve tiveram destinos bem diferentes. Enquanto Lírio, por ter os menores pés já vistos na aldeia (também chamados pés de lótus), consegue se casar com o filho de um dos homens mais ricos e importantes da região, Flor da Neve, oriunda de uma família tradicional que perdeu a sua fortuna acaba por se casar com um açougueiro, um homem que foi violento com ela durante toda a vida. A vida de escravidão e violência dessas mulheres, sua angústia constante para ter um filho homem e conseguir mantê-lo com vida para garantir a sua permanência na família é algo terrível. Mas mesmo entre todos os percalços essas mulheres se ajudam como podem, apoiando-se durante todas as etapas da vida, ainda que em ambientes tão distantes. É disso que o livro trata: de uma amizade verdadeira, que se fez possível em muitos momentos através dessa escrita.
Acredita-se que nu shu - a escrita secreta usada pelas mulheres em uma área remota da província de Hunan, na região sudoeste da China - foi desenvolvida há mil anos. Ela parece ser a única linguagem escrita do mundo criada por mulheres exclusivamente para o seu próprio uso.



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Lisa See nasceu em Paris, mas cresceu em Los Angeles, mais especificamente em Chinatown. Atualmente vive em Los Angeles. O romance foi adaptado para o cinema em 2011.

SEE, Lisa. Flor da neve e o leque secreto. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. Tradução: Léa Viveiros de Castro. 335 páginas.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

A linguagem dos pássaros


Pequena novela de estrutura linear, A linguagem dos pássaros narra a história de Miguel e Marisa, duas crianças que se encontram quando tem 11 e 9 anos, respectivamente. Marisa acaba de se mudar com a mãe para a casa ao lado onde Miguel mora com o pai, um professor de filosofia que quer que o filho siga os seus passos. O universo da infância onde esta história de amor se inicia é permeado de histórias, sendo muito ligado à natureza e ao fantástico. Na solidão em que vive com a mãe na casa ao lado, Marisa acaba por encontrar na casa de Miguel, próxima ao mar, um lugar de acolhimento. 

Na adolescência, descobrem-se apaixonados, mas quando Miguel vai para a faculdade as separações constituem um período de grande sofrimento para Marisa, que não consegue nem mesmo escrever cartas para Miguel, como uma forma de protestar pelo abandono. Miguel, no entanto, conta nas cartas que frequentemente escreve para Marisa sobre suas novas vivências. Entre a faculdade e as viagens por diversos lugares do mundo que decide conhecer, há sempre um retorno, e Marisa é sempre aquela que espera a sua volta, certa de que o amor que sente por Miguel é capaz de unir os dois e apaziguar todos os problemas.

Quando retorna dessas muitas viagens que fez na tentativa de se encontrar, de descobrir quem é de verdade, Miguel decide se casar com Marisa. Mas mesmo o amor e o desejo que sentem um pelo outro não são capazes de apaziguar o coração de Miguel, que procura encontrar algo que nem mesmo ele sabe o que é. Miguel encarna o anjo atormentado, a sombra, aquele que busca a linguagem universal, a linguagem dos pássaros, nas diversas línguas que se dedica a aprender. Traduz textos clássicos, escreve poesia, estuda filosofia, mas a vida simples ao lado de Marisa já não lhe basta. Marisa não consegue entender "porque é que ele continuava a procurar... depois de ter encontrado" (p. 40). A obsessão pela unidade, pela alma gêmea, por esse outro eu que completa e ao mesmo tempo é sombra, se aproxima do sobrenatural no final do romance.

Ambientado no presente, mas sem nenhuma marcação de tempo, o livro é rico em referências literárias e artísticas, dialogando com outras artes como a pintura, a música e o cinema e tem como tema a fragilidade do amor e a impossibilidade humana de eternizar a paixão. A linguagem dos pássaros é um livro de grande força narrativa, leitura de um só fôlego, apesar da história aparentemente simples – mas isso é só aparência, pois há outros desdobramentos, como a questão do duplo, que podem ser mais explorados a partir dessa leitura.

"Não disseram mais nada. A escuridão rodeava-os, as sombras, o rumor das vagas, ao longe surgiram as primeiras estrelas, depois o céu ficou coberto delas, começaram a distinguir as constelações, eram as mesmas, eram sempre as mesmas, como eles eram os mesmos, tinham sido tudo desde o primeiro momento, pelo menos desde o primeiro momento em que se tinham encontrado, tudo o que lhes ia acontecer a seguir já existia então, e tudo o que aconteceria depois, e sempre, com eles tudo acontecia ao mesmo tempo. Ela fechou os olhos e deixou-se adormecer, tranquila, plena, no corpo dele, no mundo negro semeado de estrelas e pássaros" (p. 62)

PEREIRA, Ana Teresa. A linguagem dos pássaros. Lisboa: Relógio D'água Editores, 2001.

Ana Teresa Pereira nasceu em 1958 no Funchal, onde vive. Publicou o seu primeiro romance em 1989, intitulado Matar a Imagem, com o qual ganhou o Prêmio Caminho Policial. Publica regularmente desde o seu primeiro romance. Em 2012 conquistou o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), com o romance O Lago.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sejamos otimistas



Já é quase regra: todo ano, em algum sábado de poucas notícias, surge aquele mesmo texto, só que repaginado, com previsões catastróficas sobre o mundo da literatura e dos livros. “Ninguém mais lê” ou “Brasileiro lê pouco”, ou ainda a dramática afirmação “os livros digitais acabarão com os livros em papel”. Um discurso tão negativo que em nada acrescenta ao mundo. Ou será que alguém acha mesmo que ler uma reportagem de jornal fará os leitores imediatamente se darem conta de que precisam pegar um livro na estante como pegamos um remédio indicado pelo médico?

No romance O filho de mil homens, um dos meus livros preferidos, o escritor português Valter Hugo Mãe brinca com esse fato de a literatura ser um remédio:

Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, pois fique sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se como um livro. O Camilo ria-se. Perguntava o que era colesterol, e o velho Alfredo dizia-lhe ser uma coisa de adulto que o esperaria se não lesse livros e ficasse burro. Por causa disso, quando lia, o pequeno Camilo sentia se a tomar conta do corpo, como a limpar-se de coisas abstratas que o poderiam abater muito concretamente. Quando percebeu o jogo, o Camilo disse ao avô que havia de se notar na casa, a quem não lesse livros caía-lhe o teto em cima de podre. O velho Alfredo riu-se muito e respondeu: um bom livro, tem de ser um bom livro. Um bom livro em favor de um corpo sem problemas de colesterol e de uma casa com teto seguro. Parecia uma ideia com muita justiça (2012, p. 69).

Acredito sim que literatura é remédio. Daqueles bem poderosos, capazes de curar tristezas, de mudar (mas também de reiterar) opiniões, de proporcionar reflexões sobre universos distintos dos nossos, de nos fazer pensar. Mas a literatura é um remédio tão específico e de difícil categorização que possui uma forma de indicação própria. Não é algo que se possa obrigar ninguém a gostar verdadeiramente.

A tradição clássica de ensino de literatura nas escolas tem demonstrado isso, pena que nem todo mundo consegue perceber. Não adianta obrigar alguém a ler, e com isso não quero dizer que o ensino de literatura deva deixar de existir, porque ele é indispensável. Com isso quero mostrar que a literatura é um remédio que precisamos desejar, e o papel da escola e também da família deve ser o de despertar o desejo de ler, fomentar o debate (e estimular a tolerância e a capacidade de dialogar, tão necessárias nos dias de hoje), além de alimentar o encanto inicial que move e forma leitores, fazendo com que eles desejem a cada livro lido um desafio maior, uma aventura diferente a ser percorrida. E o exemplo é a melhor forma de fazer isso. Como posso convencer alguém que a leitura é fascinante se eu mesmo não sou capaz de demonstrar a minha paixão pela leitura?

Cada vez que leio um desses textos com previsões apocalípticas, eu me pergunto por onde o autor tem andado que não tem visto a quantidade de jovens que está lendo, participando de clubes de leitura, escrevendo em blogs e gravando vídeos em vlogs, trocando livros para ter a chance de ler mais e driblar o alto preço cobrado nas livrarias, organizando maratonas literárias nas férias, ansiosos por compartilhar a paixão e o encanto de suas descobertas com outros leitores. Para mim é evidente que tem mais gente lendo, basta olhar ao redor. Com certeza ainda não é o suficiente, dada a extensão do nosso país, aos problemas que ainda existem, sem contar o fato de que só recentemente alguns milhões de brasileiros deixaram de viver abaixo da linha da pobreza. Se não havia dinheiro para comer, quem dirá para comprar livros. Tudo isso precisa ser pensado quando lemos sobre essas estatísticas. E não podemos nos esquecer de que leva tempo para transformá-las, mas isso não é algo impossível de acontecer.

Diante de textos tão desanimadores, eu recomendo acessar as novas redes sociais, algumas delas exclusivas para leitores, como o Skoob, que já tem mais de dois milhões de usuários no Brasil, sem falar nas redes internacionais, como o Goodreads, para ficar um pouco mais otimista e também para se animar a ler um livro pois, como disse Daniel Pennac no livro Como um romance, “Não há melhor maneira de abrir o apetite de um leitor do que lhe dar a farejar uma orgia de leitura” (Pennac, 2008, p. 112). É por isso mesmo que precisamos de professores, pais e bibliotecários apaixonados pela leitura para que possam partilhar a sua própria felicidade de ler e com isso despertar nos jovens o desejo de ler tão essencial na formação de um leitor.

Nós, leitores, podemos fazer o que mais amamos, como tenho visto com cada vez mais intensidade nas redes sociais e ao meu redor nesses últimos anos: podemos partilhar a nossa felicidade de ler, falando daqueles livros que nos tocaram a alma pois esse encantamento costuma ser contagioso e pode ajudar muito mais a mudar as estatísticas pessimistas em relação à leitura, e em proporções muito maiores, do que textos apocalípticos e negativos sobre o assunto. 

Entre os leitores deste blog que hoje já se tornaram amigos e que compartilham comigo o mesmo apreço que tenho pela leitura e seu poder transformador, sei que seguem espalhando esse encantamento contagioso e positivo sobre os livros que os encontraram e emocionaram, indicando um livro a um amigo, presenteando alguém com um livro especial, mantendo vivo esse círculo de leitores que desde sempre permitiu a construção de novos laços de amizade e de afeto. É nisso que procuro pensar quando escuto alguém dizer que ninguém mais gosta de ler. Imagino todos os livros que cruzam o país todos os dias nas muitas trocas realizadas no skoob, por exemplo. Ou nos muitos livros que são esquecidos propositalmente em algum banco de ônibus ou em um banco de praça em alguma cidade do país em iniciativas lindas como o bookcrossing. E não deixo de pensar que seria maravilhoso se em um desses dias de tédio, os jornalistas dos textos apocalípticos decidissem escrever não esse tipo de texto negativo, nem muito menos uma resenha de um lançamento do mês sobre o qual são obrigados a escrever, mas sobre um livro que de fato marcou a sua vida. Talvez assim eles conseguissem se lembrar da felicidade de ler; talvez assim eles conseguissem ver que tem muito mais gente lendo. Acredite: