quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Os bebês de Auschwitz



Uma vez escutei alguém dizer que não havia mais nada a ser escrito sobre Auschwitz, que tudo já havia sido dito nos diversos livros e filmes sobre o assunto. Penso que não. E para concordar comigo basta pensar nas 6 milhões de pessoas que foram exterminadas, levando consigo seus sonhos e histórias de vida, sobre as quais nunca saberemos. Ou ler relatos devastadores, escritos pelos próprios sobreviventes, como os de Elie Wiesel, em Noite, para ter a certeza de que essas histórias precisam sempre ser recontadas.
Livros como o da jornalista Wendy Holden são importantes na medida em que trazem à tona histórias como as de Priska, Rachel e Hanka, três mulheres de extraordinária força, que nos ensinam muito sobre o que o ser humano é capaz, tanto para o bem quanto para o mal. Sim, livros sobre o Holocausto são sempre dolorosos, porém necessários. Tratam de histórias que, ainda que absurdas de tão cruéis que são, mostram o que a intolerância e o ódio podem produzir. São histórias que não podemos deixar que sejam esquecidas, para que não se repitam.
Diferente de outros relatos pessoais, escritos por sobreviventes dos campos de concentração nazistas, este é o relato de uma jornalista norte-americana que decidiu contar a história de três mulheres, de países e classes sociais diferentes, todas levadas aos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Wendy nos conta quem foram essas mulheres, como viviam com suas famílias, o que estudaram, como se apaixonaram pelos seus maridos e todos os sonhos que alimentavam até 1938, quando Hitler começou a impor restrições aos judeus. Nesse sentido, o livro mostra como essas restrições foram progredindo durante anos, retirando dos judeus os seus direitos mais básicos, prendendo-os nos guetos onde as condições de vida já eram absurdas, até culminar em sua total desumanização nos diversos campos de concentração da Europa.
Essas três mulheres, que não se conheciam, foram levadas a Auschwitz em 1944, ainda no início da gravidez. Separadas dos maridos, elas contaram com a intuição e com a sorte ao serem interpeladas, logo na chegada, pelo médico Josef Mengele, conhecido como o médico da morte, que buscava identificar entre as mulheres aquelas que estavam grávidas. Afinal, para os nazistas, era proibido trazer mais um judeu ao mundo. Sujeitas a todo tipo de constrangimento nessas inspeções, algumas mulheres grávidas foram levadas pelo médico, que as torturava com "experimentos médicos" da maior crueldade. O mesmo era feito com pessoas com alguma deficiência e com crianças gêmeas que Mengele identificava logo na chegada aos campos. E creio que não é possível não se revoltar ao saber que Mengele fugiu, permanecendo impune de todos os crimes, morrendo no Brasil muitos anos depois, onde vivia com um nome falso.
Por sorte, essas três mulheres grávidas conseguiram mentir e enganar o médico alemão, escondendo de todos a sua gravidez. Cada uma das mulheres se viu responsável por lutar por sua vida e pela de seu bebê, e foi esse amor materno que deu forças a elas para suportarem situações inimagináveis. Elas tinham também a esperança de que a Guerra logo acabaria e elas poderiam ainda reencontrar seus maridos.

Wendy Holden fez uma vasta pesquisa, baseando-se em entrevistas, cartas e diários, para reconstruir a história de Priska, Hanka e Rachel e de seus filhos, Eva, Mark e Hana, todos três nascidos no campo de Mauthausen, na Áustria, para onde as mães haviam sido levadas já próximo ao final da guerra. Contando com ajudas inesperadas, as três mulheres, por sorte ou milagre, conseguiram ter os bebês e mantê-los com vida apesar das longas viagens de trem no frio rigoroso do inverno, das condições de higiene degradantes, da fome (elas pesavam menos de trinta quilos quando os bebês nasceram), com sede, exaustas dos trabalhos forçados e emocionalmente destruídas diante de tudo que haviam presenciado até ali.
É impossível não se comover com essa história, que detalha a eficiência com que os nazistas exterminaram milhões de judeus - e nessas horas é preciso respirar fundo por que a violência dos relatos é sempre perturbadora - mas que mostra também a força dessas mulheres, que, por sorte, conseguiram resistir aos maiores sofrimentos. E nos momentos em que a bondade foi inesperada, e por conta delas talvez as três mulheres tenham sobrevivido, é que entendemos por que seus filhos ficaram conhecidos como "bebês-milagre".
O livro também traz informações interessantes para mostrar que o sofrimento dessas pessoas, que não sei se podem ser chamadas "sobreviventes" (retomo a pergunta de Elie Wiesel: é possível sobreviver a um campo de concentração?), foi algo com que tiveram que lidar durante o resto de suas vidas. Depois da libertação dos campos pelos soldados estadunidenses, com o fim da guerra, todos eles tiveram que enfrentar viagens longas de volta para "casa" (no caso delas, de trem, mas em relatos como o de Primo Levi, em A Trégua, sabemos que muitos sobreviventes levaram mais de 6 meses para conseguir voltar para suas casas, muitas vezes caminhando longos trechos, mesmo tão debilitados como estavam). E sofreram ao não encontrar mais suas casas (muitas haviam sido roubadas) e, o mais difícil de tudo, não reencontrar mais nenhum membro de suas famílias com vida. Esse recomeço difícil é uma parte importante da história que costuma ser pouco comentada pois, não bastasse tudo o que viveram, muitos deles foram hostilizados nas ruas depois de terem sido libertados dos campos de concentração. O sofrimento de já não pertencer a nenhum lugar depois do que viveram é algo que fez parte da vida deles para sempre.

Questionamentos desse tipo são levantados por Wendy Holden, que em alguns momentos questiona o silêncio dos que nada fizeram para impedir o que de mais absurdo e desumano acontecia nos campos de concentração próximos a algumas cidades, como o de Mauthausen, onde os bebês nasceram. O sentimento de vingança que muitos sentiram contra os alemães também é comentado no livro em uma das respostas que Rachel dá ao filho, já um rapazinho:
"Seus pais se recusavam a ter qualquer coisa alemã, inclusive carro. Talvez não seja de espantar que, quando lhe perguntavam o que ele queria fazer quando crescesse, Mark respondesse: "Matar o maior número de alemães possível". Rachel ralhava. "Já perdemos tudo e todo mundo. Se perdermos nossa humanidade, perderemos a única coisa que não precisávamos perder." Só nos anos finais de vida é que Rachel admitiu que a geração responsável pelo que havia acontecido na Europa não existia mais". (pág. 319)
Priska, Rachel e Hana já faleceram, mas seus três filhos, que se reencontraram já adultos nos Estados Unidos, onde moram hoje, descobriram que não eram os únicos "bebês-milagre". Juntos, 70 anos depois do final da guerra, eles permitiram que a jornalista Wendy Holden escrevesse as suas histórias em homenagem à coragem e força de suas mães. Os bebês de Auschwitz é um livro impactante, que merece ser lido e que traz uma impressionante história sobre o amor materno, a persistência, a coragem. Ele também nos ensina sobre um período sombrio de nossa história, conhecimento fundamental para que ele não se repita.
"As almas de suas mães e de milhões de outras pessoas que morreram durante a guerra merecem que sua história seja contada e recontada, para jamais ser esquecida. "Tentamos viver a vida da melhor maneira possível, preenchendo esse espaço tão vazio", diz Hana. "Em memória à memória delas, cada dia que nasce é uma nova promessa" (p. 349)
HOLDEN, Wendy. Os bebês de Auschwitz. São Paulo: Globo Livros, 2015. Tradução: Bruno Alexander.
*Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora Globo Livros.

2 comentários:

Michelle disse...

Concordo com você. Cada pessoa ali tem história para contar, e acho importante ouvir. Vai ser uma leitura dolorosa, mas não posso deixar passar. Tks pela dica! ;)

Anônimo disse...

Estou lendo esse livro. Relatos muito dolorosos de uma época triste da história do mundo.