domingo, 29 de maio de 2016

A caderneta vermelha



O que os objetos que carregamos em nosso dia a dia contam sobre nós? 

Qualquer história que nos transporta pelas ruas de Paris já vale a pena. Acrescente a isso o charme de se ter um personagem livreiro e algumas referências literárias pelo caminho. O enredo simples de A caderneta vermelha é despretensioso e se desenvolve de forma leve. A sensação durante a leitura é a de que passeamos pelas ruas de Paris à medida que vamos conhecendo um pouco mais dos dois protagonistas da história, Laurent e Laure. Dois personagens que, por um acaso do destino, tem seus caminhos entrelaçados sem nunca terem se encontrado pessoalmente.

Laurent Letellier é um livreiro divorciado, pai de uma adolescente rebelde e que vive uma rotina tranquila em sua pequena livraria nos arredores de Paris. Sem muito êxito nos relacionamentos amorosos, divide seu tempo entre os encontros semanais com a filha, o trabalho na livraria e os livros. Um dia durante sua caminhada matinal, Laurent encontra uma bolsa de mulher na rua, ainda com vários objetos dentro, mas sem nenhum documento de identificação ou celular, que haviam sido levados pelo ladrão durante um assalto. Os objetos contidos na bolsa, no entanto, começam a dar pistas sobre sua proprietária que, aos olhos de Laurent, parece cada vez mais ser uma mulher interessante, que ele gostaria de conhecer. A caderneta vermelha que dá título ao livro é o objeto onde Laure anota pensamentos e sonhos no seu dia a dia e revela uma mulher com interesses muito próximos ao do livreiro, alguém que ele nunca teve a chance de encontrar, mas que gostaria muito de conhecer.

Incentivado pela filha, que há muito não via o pai tão interessado em alguém, Laurent começa uma busca pela moça misteriosa que perdeu uma bolsa cheia de objetos que contam histórias. A investigação de Laurent o leva por pequenas aventuras, até mesmo um encontro inesperado com o escritor Patrick Modiano. Uma história leve e despretensiosa que nos faz pensar sobre esses acasos que às vezes nos levam aos caminhos certos.

***

Antoine Laurain nasceu em Paris nos anos 1970. Formado em cinema, atua como roteirista e diretor. É também jornalista e colecionador de antiguidades. Escreveu cinco romances, entre eles Le Chapeu de Mitterrand, que recebeu o prêmio Landerneau Découvertes e foi adaptado para a TV na França. A caderneta vermelha é seu primeiro livro publicado no Brasil.

LAURAIN, Antoine. A caderneta vermelha. Trad. Joana Angélica d'Ávila Melo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

A noite não adormece nos olhos das mulheres

A noite não adormece nos olhos das mulheres

CONCEIÇÃO EVARISTO
(Em memória de Beatriz Nascimento)


A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.