segunda-feira, 18 de julho de 2016

Butcher's Crossing


"Esses moços", disse McDonald com desdém. 
"Sempre acham que existe alguma coisa mais para descobrir" 


Estados Unidos, 1870. O jovem Will Andrews, estudante de Direito na Universidade de Harvard, decide largar tudo em busca de uma vida mais autêntica. Está em busca de algo que nem ele mesmo sabe o que é e chega a Butcher's Crossing, uma cidadezinha do Kansas, dessas bem típicas dos filmes de faroeste, com um pouco de dinheiro e uma vontade de ver o mundo que até então ele só conheceu nos livros.

Ao chegar em Butcher's Crossing, ele procura um velho conhecido de seu pai, McDonald, dono de uma charquearia e o maior negociante de peles de búfalos da região. Enquanto caminha até lá, Will passa por grupos de caçadores que saem em busca dos búfalos, cujas peles são vendidas para McDonald, um negócio lucrativo na época. Nessa cidadezinha isolada, pacata, onde o tempo parece ter parado, as pessoas vivem na esperança da chegada da ferrovia, que mudaria para melhor as condições de vida e de trabalho de todos. 


No saloon da cidade, Will conhece Miller, um caçador experiente indicado por McDonald, e seu fiel escudeiro, Charley Hoge. Assim, ele fica sabendo dos sonhos de Miller de conseguir ir em busca da maior manada de búfalos que ele já viu, anos antes, em uma região mais afastada e que aparentemente se mantém intocada. Will vê nessa expedição a aventura que busca e decide partir com Miller, Charley e o rabugento Schneider, o esfolador contratado para tirar as peles dos búfalos, nessa jornada que o aproximará da natureza de forma intensa e transformadora.

Segundo romance do escritor estadunidense John Williams que chega ao público brasileiro pela Rádio Londres, Butcher's Crossing é um livro surpreendente, ao estilo de um bom faroeste americano, mas indo muito além disso. Um enredo aparentemente simples, mas que adquire grande profundidade em determinados momentos, como parece ser a marca de John Williams. Somos completamente envolvidos nessa história, cujas descrições tão ricas nos transportam de uma pequena cidadezinha no Kansas até as montanhas do Colorado. Quase dá para sentir a poeira, o vento, os cheiros.

Juntos, os quatro personagens enfrentam a exaustão física, a fome, a sede, o calor e o frio intenso do inverno. A caçada acaba por se tornar uma experiência existencial para eles, mas principalmente para Andrews, que passa por um processo de amadurecimento diante da vida durante essa jornada que acaba por durar muito mais tempo do que eles imaginavam. Nesse sentido, o romance pode ser lido como um romance de formação. Com seu jeito mais quieto e observador, e o contato com homens tão diferentes quanto Miller, Charley e Schneider por tanto tempo possibilitam um grande aprendizado e equilibram as diferentes perspectivas presentes durante a viagem.

Apesar do enredo simples, o que parece conquistar os leitores é a forma como John Williams consegue narrar a história de modo a nos envolver completamente nesse cenário de intenso contato com a natureza, com descrições ricas e sensoriais, tão perfeito que nos imaginamos mesmo dentro de um filme de faroeste (não é a toa que já existe um filme baseado nesse livro). O deslumbramento de Will diante da natureza - ao mesmo tempo tão assustadora - permite refletir sobre o papel da natureza na vida do homem, sua força, sua capacidade de transformação. Nenhum deles permanece o mesmo depois dessa jornada, ainda que o que movia cada um deles fosse algo diferente. Essa transformação é visível nas personagens, nas quais é possível perceber até mesmo certa animalização diante da experiência de isolamento em meio à natureza.
"Não conseguia imaginar sequer imaginar como seria. Com um leve choque, ele se deu conta de que o mundo, além daquela região cercada por encostas de montanhas por todos os lados, havia se apagado em sua memória. Não conseguia sequer se lembrar da montanha que haviam subido, sem mesmo da vasta planície onde haviam suado e sentido sede, tampouco de Butcher's Crossing, aonde chegara e que deixara apenas uma semana antes. Aquele mundo só lhe voltava aos surtos e de forma confusa, como que escondido num sonho. Havia passado naquele vale o período mais importante de sua vida, e quando olhou de cima - plano, verde-amarelado, as altas muralhas da montanha, amadeirada de pinheiros verdes escuros onde flamejava o ouro rubro dos álamos trêmulos, as rochas ressaltadas e as encostas, tudo toldado pelo azul intenso do céu de ar rarefeito -, parecia-lhe que os próprios contornos do lugar eram fluidos sob seus olhos, que seu próprio olhar modalva o que ele via e que, em troca, lhe dava à própria existência forma e lugar. Não conseguia mais pensar em si mesmo fora de onde se encontrava" (p. 194-195).
Butcher's Crossing é um livro sobre a necessidade de dar sentido à vida e à existência, a necessidade intensa de descobrir o mundo e desbravá-lo, procurando por algo que nem sabemos o que seja, sentimento tão comum na juventude (e às vezes também além dela). É um livro sobre as paixões e as ambições idealizadas, muitas das quais nos movem durante boa parte da vida, até percebermos que o tempo passou, que no final não fazia tanto sentido como imaginávamos. Talvez seja esse elemento existencial o que nos aproxima tanto do livro, mesmo que não tenhamos jamais imaginado gostar de uma narrativa que tratasse de caçadas de búfalos e homens em território selvagem. Mas se pensarmos que essa caçada é a vida, e que a busca desenfreada por trabalho, aventuras e descobertas, e também paixões, seja um sentimento tão comum entre nós, a ser trabalhado com o tempo e o amadurecimento (sábias palavras do velho McDonald), tudo faz mais sentido. E nos deixa com um sentimento, misto de melancolia e nostalgia, quando a jornada das personagens (e a leitura do livro) chega ao fim. Uma das melhores leituras do ano.

"Depois de um instante de euforia diante do anúncio de Miller, Andrews se sentiu tomado por uma tristeza estranha, como um pressentimento de nostalgia. Olhou para a pequena fogueira ardendo alegremente contra a escuridão e, mais além, ele viu a escuridão. Lá estava o vale que ele acabara conhecendo tão bem quanto a palma da própria mão. Ele não conseguia enxergá-lo, mas sabia que estava ali; e lá estavam os cadáveres putrefatos dos búfalos por cujas peles eles haviam trocado seu suor, seu tempo e boa parte de suas energias. Os fardos de peles também estavam por ali no escuro. Pela manhã, eles os carregariam na carroça e iriam embora daquele lugar; e ele teve a sensação de que jamais retornaria ali, embora soubesse que precisaria voltar com os outros para buscar as peles que não conseguissem levar. Sentia vagamente que estava deixando alguma coisa para trás, algo que talvez pudesse ser precioso para ele, se soubesse do que se tratava. Naquela noite, depois que a fogueira apagou, ele se deitou no escuro, sozinho, fora do abrigo, e deixou que o frio atravessasse suas roupas e sua carne. Enfim, adormeceu, mas acordou à noite várias vezes, e forçou a vista diante da escuridão da noite sem estrelas" (p. 254).
***

John Edward Williams (1922-1994) nasceu em Clarksville, no Texas, Estados Unidos. Serviu na aviação militar americana durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1954, recebeu o título de doutor em Literatura Inglesa na Universidade do Missouri. Trabalhou como professor assistente de Literatura Inglesa na Universidade de Denver até sua aposentadoria, em 1985. Em Denver, também foi o editor fundador de uma revista literária,The Denver Quarterly. Publicou quatro livros: 
"Nothing but the Night" (1948), "Butcher's Crossing" (1960),  "Stoner" (1965) e Augustus (1972), que ganhou o National Book Award. Também publicou dois livros de poesia: "The Broken Landscape: Poems" (1949) e "The Necessary Lie" (1965).


*Recebi este livro como cortesia da Editora Rádio Londres.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

O americano tranquilo



Publicado originalmente em 1955, O americano tranquilo, de Graham Greene, acaba de ganhar uma nova edição pela Biblioteca Azul, com tradução de Cássio de Arantes Leite. O romance, ambientado na Indochina no período de 1946 a 1954, já foi adaptado para o cinema e tem como tema central um triângulo amoroso nesse cenário de conflito.

Dividido em quatro partes, o romance retrata os conflitos morais de Thomas Fowler, um correspondente britânico em Saigon, durante a Guerra da Indochina, e um jovem americano idealista, Alden Pyle, enviado em uma missão secreta para o local. Os dois se conhecem por acaso e desenvolvem uma relação de amizade um tanto desequilibrada e movida em grande parte pela solidão que vivenciam nesse cenário de guerra. O jovem Pyle, idealista e romântico, vê em Thomas um amigo a quem deve lealdade, mas as coisas se complicam quando ele se encanta pela jovem Phuong, a amante vietnamita de Fowler, o que causará uma discórdia velada entre os dois.

O idealismo de Pyle incomoda Thomas, que passa a refletir sobre suas atitudes e posicionamentos a partir da convivência com Pyle, afinal, é através dos outros que passamos a conhecer melhor nós mesmos. 
A disputa entre os dois reverbera a disputa ideológica que passam a ter. Pyle representa um idealismo, por vezes cego, que pode causar destruição, ao passo que Fowler traz um olhar mais cético e crítico à toda violência da guerra. A princípio, ele tenta se isentar de qualquer participação em tudo que vê e deve retratar aos jornais ingleses, até se dar conta de que estar ali já o torna cúmplice de tudo o que vê e critica. Greene de certa forma antecipou nesse romance o papel que os Estados Unidos assumiria na Guerra do Vietnã (1959-1973), após a derrota da França e isso se vê principalmente no papel maior que Pyle começa a desenvolver no local. Os questionamentos morais que Thomas Fowler faz em relação à guerra, retratando como os soldados se sentiam naquele cenário de destruição, proporciona uma reflexão sobre o mal e a forma banal como ele prevalece, e os soldados se questionando sobre as mortes que estão causando e a mando (e em nome) de quem (e de quais ideais) são um contraponto interessante. Essa é sem dúvida a parte mais rica do romance, na crítica que faz ao modo como as ideologias podem corromper as pessoas e destruir as relações que estabelecem. 

Algo que merece ser comentado é a forma objetificada com que a personagem feminina é retratada. A jovem Phuong é um mero objeto de disputa entre os dois homens, destituída de opinião e sentimentos, que não compreende o inglês e fala pouco francês, ou seja, uma personagem que praticamente não tem voz. A preocupação da irmã de Phuong é casá-la com um estrangeiro que tenha dinheiro e que possa lhe dar alguma condição de vida. Thomas Fowler, que trata Phuong como alguém subserviente e sempre disposto a fazer e dizer o que ele quer, de repente se vê amaçado por esse jovem idealista que quer se casar com Phuong, mostrando que tem dinheiro e que pode assegurar o seu futuro. Apesar de demonstrar uma preocupação em relação ao possível destino de Phuong na prostituição se ali permanecer sozinha, a oferta de casamento de Pyle é mais um acordo do que uma relação movida por amor. Em determinado momento Fowler diz a Phuong: "Não tenho dinheiro algum guardado. Não posso cobrir o lance de Pyle". É quase um leilão.

"Beije-me, Phuong." Ela não fazia charme. Fez imediatamente o que pedi e continuou a contar o filme. Do mesmo modo, teria feito amor comigo na mesma hora se eu houvesse lhe pedido, tirando a calça sem perguntar nada, para, depois, retomar o fio da história de madame Bompierre e as desventuras do chefe do correio" (Greene, pág. 141)
"Observei-a atentamente conforme ela perguntava como eu estava e tocava a tala em minha perna, oferecendo o ombro para que me apoiasse, como se alguém pudesse se apoiar com segurança em uma planta tão jovem. Eu disse: "Estou feliz de estar em casa".
Ela disse que sentira minha falta, o que, é claro, era o que eu queria escutar: sempre me dizia o que eu queria escutar, como um cule respondendo perguntas, exceto por acidente. Agora eu esperava o acidente." (Greene, pág. 139-140)


Mesmo movido por um aparente sentimento de nobreza, que o próprio Thomas reconhece como sendo muito maior que ele próprio, Pyle é capaz de organizar um dos ataques ao centro da cidade, causando a morte de diversas mulheres e crianças. Ao mesmo tempo, assim que se encanta por Phuong, busca contar a verdade ao amigo para apaziguar-se de qualquer sentimento de traição. Procura manter-se firme em seus ideais, chegando até mesmo a salvar Thomas da morte durante uma explosão, o que gera em Thomas um conflito moral ainda maior, uma vez que mesmo assim ele não consegue deixar de se irritar com Pyle por querer tirar dele a garantia de não enfrentar uma velhice sozinho que Phuong representa.

É interessante a forma como Graham Greene narra essa história de modo a prender o leitor interessado em descobrir como tudo vai acabar, em um clima de suspense com ares de investigação policial. Mas é importante ter em mente que temos aqui a perspectiva social do homem branco e heterossexual, o que explica em grande parte a superficialidade das personagens femininas e o sexismo que ainda permeia muitas narrativas de guerra.

GREENE, Graham. O americano tranquilo. Trad. Cássio de Arantes Leite. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.

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O inglês Graham Greene teve uma formação ortodoxa em colégios no interior da Inglaterra, sempre se arriscando na vida literária – em poemas, artigos e contos. Como jornalista, viajou para vários lugares distantes de seu país – separados tanto pela geografia quanto pela cultura. Com passagens por países do oriente e da África, entre os anos 1950 e 1960, introduziu em seus romances um forte teor político. Recebeu inúmeros prêmios e hoje é considerado um dos autores mais importantes do romance moderno inglês.

*Recebi este livro como cortesia da editora Globo Livros.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Resultado do sorteio

E quem ganhou o livro A definição do amor foi a Lulu :)
Obrigada a todos que participaram e até o próximo sorteio.