segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Liturgia do fim



Em tempos em que buscamos dar mais visibilidade ao trabalho de escritoras, é sempre uma alegria quando encontro um romance de uma escritora brasileira que me encanta tanto pelo trabalho com a linguagem, quanto pelo conteúdo que apresenta. Foi assim com Liturgia do fim, segundo romance da paraibana Marília Arnaud, que acaba de ser publicado pela editora Tordesilhas.

Narrado por Inácio, um homem de cerca de trinta anos, o romance discute as raízes e as consequências de um sistema sexista e patriarcal ao retratar o retorno de Inácio a sua cidade natal, chamada Perdição, muitos anos depois do dia em que foi obrigado a deixar a cidade e sua família para trás. Esse dia é o ponto de partida do romance, e seguimos acompanhando as lembranças de Inácio de como foi sua vida depois de ter deixado a cidade, seu casamento, o trabalho como professor e escritor, sua paixão pelos livros. Mas as lembranças de infância continuam a assombrar Inácio que, assim como os demais membros da família, foi marcado pela convivência com um pai autoritário e opressor em um ambiente austero e violento. Mesmo tentando lutar contra essas lembranças, as consequências dessas vivências deixam marcas profundas em Inácio, que tem dificuldades em se relacionar com os outros e se torna um pai e marido ausentes. Essa viagem de retorno à cidade de Perdição é uma viagem de busca por redenção, uma tentativa de se apaziguar com as lembranças do passado e com o pai, que já está bem velho quando Inácio o reencontra.

Nesse sentido, o romance possibilita refletir sobre a construção dos papéis de gênero no ambiente familiar, uma vez que temos uma figura paterna autoritária, que pune frequentemente Inácio por sua personalidade mais sensível e interessada nos livros, o que nos faz refletir sobre como também é violenta a construção da masculinidade nas sociedades patriarcais. As personagens femininas são muito interessantes no romance, apesar de termos um narrador protagonista masculino, pois podemos ver como as mulheres são as maiores vítimas de um sistema patriarcal: ou são totalmente submissas e silenciadas como a mãe de Inácio, ou contestam e se rebelam contra o autoritarismo do pai, como é o caso da irmã de Inácio, ou enlouquecem como a tia louca de Inácio, que habita o sótão da casa - uma imagem também de resistência por não aceitar o sistema vigente e se recusar a fazer parte dele (e também uma referência a um importante texto feminista).

Em Liturgia do fim encontramos um texto trabalhado com grande cuidado, o que torna a leitura muito prazerosa. E as reflexões que ele incita ao retratar uma realidade ainda muito comum é o que torna a leitura desse texto ainda mais interessante.

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"O que farei ao final deste relato? Subirei ao topo de Perdição, um mundo velado pelos guizos frios do vento, onde se ergue e se espraia um cenário de alturas, larguezas e ondulações, paisagem de uma quietude espessa, onírica, de uma imponência que meus olhos mal conseguem sustentar, e que contrasta com o espaço estiado e sem saída, com a terra de cercas e desalento que me habita, e do seu parapeito secreto jogarei para o alto o manuscrito que tenho aqui em minhas mãos, folha por folha, numa espécie de liturgia do fim, afugentando com meu gesto os pássaros de sonho, os deuses emplumados que mergulharão no milagre azul dos meus voos, e minhas palavras dançarão ao ritmo da ventania, valsa triste sob um céu de nenhuma sombra"

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Marília Arnaud nasceu em Campina Grande, Paraíba. Escreveu quatro livros de contos, entre eles, O livro dos afetos (publicado pela editora 7letras em 2005), e participou de várias coletâneas de contos publicadas por importantes editoras do país. Em 2012 publicou seu primeiro romance, Suíte de silêncios, pela editora Rocco.

*Recebi este livro como cortesia da Editora Tordesilhas

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Sorteio: A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe



Em parceria com a Biblioteca Azul, em setembro teremos um sorteio mais que especial: um exemplar da nova edição de A Máquina de Fazer Espanhóis autografada pelo Valter Hugo Mãe =]

Para participar do sorteio é só preencher o formulário (clique aqui) com seu nome e email e responder a pergunta desafio. As inscrições podem ser feitas até o dia 04/09/2016, apenas através deste formulário, e o sorteio será realizado no dia 05/09/2016, às 10h. 

Sorteio válido apenas para residentes no Brasil. 

O resultado será informado aqui no blog. Boa sorte! :)


sábado, 13 de agosto de 2016

Sobre livros perdidos e achados



Ontem passei pela biblioteca central da universidade. Precisava de um livro para um texto que estou escrevendo, mas como às vezes demoro muito para localizar as coisas que eu preciso na biblioteca (aquele sistema de organização é algo que ainda me engana muitas vezes), acabo sempre passeando por outras estantes, olhando os livros com calma, vez ou outra algum me chama a atenção e ontem não foi diferente. Peguei alguns da estante, sentei em uma das mesas de estudo e fiquei por lá esperando o horário em que iria buscar minha irmã. 

Adoro bibliotecas. Sempre gostei de ficar passeando pelos corredores, olhando as lombadas dos livros, encontrando títulos interessantes; é um lugar cheio de possibilidades. Já pararam para pensar que há livros ali que talvez não tenham sido lidos por ninguém há anos? Acho triste como ocorre nas universidades estadunidenses, que descartam alguns livros depois de muito tempo sem que tenham sido emprestados. Por conta disso, já consegui comprar livros descartados por universidades, em ótimo estado, verdadeiras preciosidades, em sebos. Mesmo achando triste que eles deixassem de ter um lugarzinho para eles, fico sempre feliz quando esses livros me encontram, ainda mais vindo de tão longe.

Depois de mais de uma hora por lá, fui para o balcão de empréstimos. Qual não foi minha surpresa quando a bibliotecária me olha e diz:
- O livro desaparecido!

Sem entender o que era, apenas disse que o livro estava na prateleira, oras. Como assim desaparecido? E então ela me mostra que no sistema da biblioteca aquele livro constava, desde 2011, como desaparecido. Acho que alguém, por descuido, acabou colocando o livro em uma prateleira diferente, e com isso ele não era mais encontrado. Vejam só como é importante respeitarmos essas regras e deixar os livros consultados naquelas mesas específicas, para que os bibliotecários possam colocá-los nos lugares certos. Esse sistema de organização é mesmo algo importante e uma coisa que eu pretendo aprender bem ainda (já tô bem melhor do que nas primeiras vezes na biblioteca central).

Outra bibliotecária foi chamada para orientar a primeira sobre como proceder, pois dada a surpresa da moça, não se encontram livros desaparecidos com muita frequência, ela não sabia o que fazer. Após verificarem que o livro estava em bom estado e em condições de ser emprestado, pude efetuar o empréstimo. Ele voltou comigo para casa, para seu primeiro passeio depois de cinco anos na estante da biblioteca.

Foi uma coisa bonita no meu dia, isso de saber que salvei um livro do esquecimento. São sempre os livros que me salvam, foi bom ter a chance de fazer isso também, ainda mais de um livro feminista, mesmo que tenha sido por acaso. (Mas como acho que são os livros que nos escolhem, talvez nem tenha sido tanto acaso assim).

E vocês, já encontraram algum livro perdido? =]

domingo, 7 de agosto de 2016

Vidas Partidas


Felizinhas

Lembro de minha mãe com algodão nas narinas e 
sete furos abaixo do seio esquerdo. Ornamentais. 
E também lembro da minha avó roxinha, 
roxa que nem repolho, com uns ornamentos no pescoço. 
E me ensinaram que elas eram felizes. 
(Ana Elisa Ribeiro, Beijo, boa sorte, 2015, p. 17)


No dia em que a Lei Maria da Penha* completa 10 anos, decidi escrever sobre o filme Vidas Partidas, do diretor Marcos Schechtman, que estreou essa semana nos cinemas brasileiros. Inspirado nas muitas histórias de violência contra as mulheres que ainda hoje infelizmente são uma realidade, o filme conta a história de Graça, interpretada pela atriz Naura Schneider, uma bióloga de sucesso, casada e mãe de duas filhas. Graça é apaixonada pelo marido, Raul, interpretado pelo ator Domingos Montagner, e os dois vivem um relacionamento passional e abusivo. 

Ambientado no nordeste do Brasil nos anos 1980, o filme coloca em pauta uma questão essencial nos nossos dias: a violência doméstica que destrói a vida de mulheres no mundo inteiro e os problemas que as mulheres ainda enfrentam ao buscar ajuda em situações de violência, uma vez que a burocracia e a falta de preparo dos profissionais que prestam atendimento às vítimas, e também por parte da polícia, dificulta bastante as denúncias. 

A relação entre o casal é intensa e desde o início já percebemos os sinais de que é uma relação abusiva. Autoritário, ciumento, Raul age de forma a controlar tudo na rotina familiar, monitorando todo e qualquer contato que a esposa tenha, mesmo que seja com colegas de trabalho ou outros membros da família. Apresenta reações exageradas com as filhas e com a esposa e depois se arrepende, pedindo desculpas e trazendo presentes, algo comum nesses casos de violência e comportamento que ajuda a manter as mulheres presas aos ciclos de violência.

Os problemas vão aumentando quando Raul fica desempregado e Graça avança em sua carreira, recebendo prêmios pelo seu trabalho. No patriarcado, o sucesso e a independência das mulheres não é visto com bons olhos e a violência surge muitas vezes como forma de mantê-las "sob controle", em situação de inferioridade. 

Tentando ajudar Raul, Graça pede um favor a um ex-namorado, que consegue um emprego como professor na universidade para Raul. Quando começa a lecionar, Raul logo se envolve com as alunas e mantém trancadas em um quarto da casa todas as cartas que recebe de suas amantes. Ao mesmo tempo, Raul passa a agir com mais e mais violência, fazendo cenas de ciúmes no ambiente profissional de Graça, o que a prejudica bastante. A violência psicológica que já existia se intensifica e as agressões físicas começam. 

O mais interessante do filme é que ele mostra bem como os ciclos de violência ocorrem e como as mudanças de comportamento do agressor, que logo após ter agredido de forma violenta a esposa pede perdão e dá presentes e flores, ou age de forma amorosa com as filhas, mostrando ser um bom pai, são formas de manter a mulher presa ao ciclo de violência por pensar na manutenção da família. O que eu mais gostei, no entanto, foi o fato de Graça ter ido até o fim no processo judicial contra o agressor. Só lamentei que isso tenha demorado tanto para acontecer, pois cada dia de espera significa mais riscos para a mulher em situação violenta. É importante pensar também o impacto dessa violência para as crianças que vivem presenciando essa violência cometida pelo pai, o que muitas vezes também as transforma em vítimas.

É sem dúvida um filme que vale a pena ser visto pela discussão importante que ele traz nos dias de hoje e que pode ser muito informativo. Acho que é também um alerta para as mulheres que muitas vezes não sabem reconhecer que vivem em uma situação de violência porque somos ensinadas desde criança que o casamento significa posse (para os homens), sacrifício (por parte da mulher) e que é responsabilidade da mulher mantê-lo para preservar a família. Precisamos desconstruir essa ideia hoje e pelo futuro das próximas gerações. E precisamos conversar para reconhecer que violência dói e não é direito e que há formas de resistir e de lutar para que os agressores sejam punidos.

Recomendo a leitura:



Para assistir ao trailer:




*Lei diminuiu em 10% os assassinatos contra mulheres

Segundo dados de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a lei Maria da Penha contribuiu para uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das residência das vítimas.

* E se vocês conhecerem outros filmes (e também livros, músicas) que falem sobre violência doméstica, compartilhem aqui nos comentários =]