domingo, 29 de outubro de 2017

[Manuel António Pina]

Amor como em casa                                                         


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.


Café Orfeu

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.


Alguém atrás de ti

Como no sonho dum sonho, arde
na mão fechada de Deus o que passou.
É cada vez mais tarde
onde o que eu fui sou.

Que coisa morreu
na minha infância
e está lá a ser eu?
A lâmpada do quarto? A criança?

Em quem tudo isto
a si próprio se sente?
Também aquele que escreve
é escrito para sempre.

Manuel António Pina. Poesia Reunida. Lisboa: Assírio e Alvim, 2001.

* Manuel António Pina (18 de novembro de 1943 — 19 de outubro de 2012) foi um jornalista e escritor português, premiado em 2011 com o Prêmio Camões.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O Martelo

a porca

a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.



o urubu

corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)
deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular
eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.

Ivánova, Adelaide. O martelo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições garupa, 2017.

Adelaide Ivánova nasceu em 1982 na cidade de Recife. Jornalista, poeta, tradutora e fotógrafa, seu trabalho percorre o mundo em publicações impressas e digitais como i-D (UK), Colors (Itália), Te Hufngton Post (EUA), Modo de Usar & Co. (Brasil), Suplemento Pernambuco (Brasil) entre outras. "O Martelo" é seu terceiro livro de poemas.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O apocalipse dos trabalhadores



Neste romance, Valter Hugo Mãe nos presenteia com a história de duas empregadas domésticas em Portugal, Maria da Graça e Quitéria. Duas mulheres trabalhadoras unidas pela cumplicidade da amizade e de sua ocupação. Maria da Graça, casada com Augusto, um pescador, é quem sustenta a casa com seu trabalho como “mulher-a-dias”, como se diz em Portugal. Augusto passa a maior parte do ano no mar, e mesmo quando retorna não contribui muito com as despesas da casa. Maria da Graça trabalha na casa do senhor Ferreira, um homem rico e aposentado, que abusa sexualmente de Maria da Graça em sua condição de empregada doméstica, se apropriando do seu corpo como parte do serviço pelo qual paga. O sofrimento de Maria da Graça pode ser percebido pelos pesadelos que ela descreve ao longo da narrativa, da tristeza crescente que passa a demonstrar, mesmo depois da morte do senhor Ferreira, e consequente fim dos abusos. Uma amostra de que o sofrimento causado pela violência desses assédios pode durar muito mais tempo do que se imagina.

O peso das expectativas geralmente atribuídas às mulheres, como esse ideal de amor romântico que é reproduzido desde a infância com os contos de fadas em que todos são “felizes para sempre”, faz com que Maria da Graça comece a achar que está apaixonada pelo patrão. Essa imagem de uma mulher que é abusada sexualmente em seu ambiente de trabalho e assume um discurso totalmente naturalizante da violência, interpretando-a como amor revela o perigo desses discursos. Felizmente na história, a amiga, Quitéria, aparece como uma espécie de alter ego e diz a Maria da Graça o que nós temos vontade de dizer: Maria da Graça, "és muito nova para te deixares convencer que o amor é sermos violadas” (p.20). 

No romance, temos também a história de Andriy, um jovem que deixa seus pais na Ucrânia em crise, e migra para Portugal em busca de trabalho, como muitos fizeram na época da grande fome ucraniana. Andriy passa a se relacionar com Quitéria, ao mesmo tempo em que sente grande solidão por estar longe da família, com a qual se preocupa, e um tanto isolado, pois não fala português e em Portugal, concentrando-se unicamente no trabalho, passa a constatar quão violenta é a condição desumanizadora do trabalho, que desconsidera os sentimentos dos homens e passa a tratá-los como máquinas. Vemos com o relacionamento de Andriy e Quitéria também uma inversão dos papeis tradicionais de gênero, uma vez que é ele quem demonstra maior sensibilidade diante do relacionamento dos dois, mostrando como os homens também sofrem em uma sociedade patriarcal, que associa o masculino à virilidade, agressividade e também ausência de emoções.

O apocalipse dos trabalhadores é um romance que fala sobre a condição dos trabalhadores e trabalhadoras no mundo contemporâneo; é também um romance que fala sobre a bonita relação de amizade que surge nas circunstâncias mais inesperadas, assim como aborda a violência a que as mulheres estão constantemente submetidas, seja no ambiente doméstico, seja em seu local de trabalho. Acho que ele fala também sobre o problema dessa concepção idealizada de amor, o que somos levados a acreditar que é amor, e que, na verdade, é o que pode nos destruir, como acontece com uma das personagens. Levada a acreditar que a felicidade é “morrer de amor”, passa a considerar uma violência como amor, e põe fim à sua vida para alcançar esse ideal. E talvez seja isso o grande mérito do livro, fazer-nos refletir sobre aquilo que nesse mundo tão absurdo temos chamado de amor.

A nova edição pela Biblioteca Azul, atual editora de Valter Hugo Mãe no Brasil, conta com ilustrações exclusivas de Eduardo Berliner e prefácio de Ignácio de Loyola Brandão.

MÃE, Valter Hugo. O apocalipse dos trabalhadores. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

E o Prêmio Nobel vai para...


O escritor inglês Kazuo Ishiguro ganhou hoje o Prêmio Nobel de Literatura 2017 "por seus romances de grande força emocional que revelaram o abismo sob o nosso senso ilusório de conexão com o mundo", disse a Academia Sueca. Eu sempre lamento quando o prêmio não vai para uma escritora, mas hoje confesso que fiquei feliz com a premiação, pois Ishiguro escreveu um dos livros da minha vida (aquela listinha seleta de livros que me emocionaram muito e com os quais me identifiquei profundamente): Os vestígios do dia é um dos livros mais bonitos que eu já li. O filme, adaptado para o cinema em 1993, com Anthony Hopkins e Emma Thompson, também é incrível. (Clique para ver o filme). Também gostei bastante de Não me abandone jamais (Never let me go), que já virou filme.



Kazuo Ishiguro nasceu em 8 de novembro de 1954, em Nagasaki, no Japão. A família mudou-se para o Reino Unido quando ele tinha cinco anos. Ele só voltou para visitar seu país de origem quando adulto. No final dos anos 1970, formou-se em Inglês e Filosofia pela University of Kent, e depois estudou escrita criativa na University of East Anglia. Desde a publicação de seu primeiro romance, Uma pálida visão dos montes (A Pale View of the Hills) em 1982, é escritor em tempo integral. Ele ganhou o Booker Prize em 1989 por Os vestígios do dia. Os temas mais associados às suas obras são a memória, o tempo e a desilusão. Seus dois primeiros romances são ambientados em Nagasaki, logo após a Segunda Guerra Mundial. Além dos oito livros publicados, Ishiguro também escreveu roteiros para o cinema e televisão.

Obras de Kazuo Ishiguro:

(1982) Uma pálida visão dos montes (A Pale View of Hills)
(1986) Um artista do mundo flutuante (An Artist of the Floating World)
(1989) Os vestígios do dia (The Remains of the Day)
(1995) O Inconsolável (The Unconsoled)
(2000) Quando Éramos Órfãos (When We Were Orphans)
(2005) Não me abandone jamais (Never Let Me Go)
(2015) O Gigante Enterrado (The Buried giant)

(Informações traduzidas por mim e extraídas do site da Academia Sueca, aqui ).